Semeionologia: doutrina bíblica do milagre

Nelson Gervoni[1]
Introdução
O
 presente artigo tem como objetivo subsidiar a aula que trata do assunto Milagres, no curso de inverno “A Igreja e os valores do relativismo”, oferecido pela Escola Bíblica Dominical da Comunidade Cristã Família da Fé, em Campinas/SP. Conforme proposto pelos organizadores do curso, o tema da aula parte da dupla problematização: “Deus ainda faz milagres? e Onde está o meu milagre?”, questões que tentaremos responder ao longo de nossa pesquisa, relatada neste trabalho.
A fim de alcançarmos esse objetivo organizamos nosso estudo em tópicos que tratam dos seguintes assuntos: Conceito de milagre; Exemplos na Bíblia de milagres conforme a definição proposta; Os milagres e suas respectivas alterações de leis; A extensão da lista de milagres na Bíblia; Leis naturais “revogadas” por leis sobrenaturais; O milagre como base do Plano de Salvação; O milagre e sua relação com os dons manifestacionais; Os milagres e seus propósitos; e Semeionologia prática: a doutrina bíblica do milagre e suas implicações na vida do crente.
Para desenvolver nosso estudo nos valemos de uma pesquisa bibliográfica, através da qual foram consultados, além da Bíblia Sagrada (Versão ARA - Almeida Revista e Atualizada[2]), artigos e textos conforme indicados nas referências bibliográficas.
Vale dizer que esta pesquisa não tem o propósito de esgotar um assunto tão vasto como este, visando, além de seu objetivo específico (subsidiar a exposição do tema no curso de inverno), oferecer uma pequena contribuição a estudantes da Bíblia e da Teologia, num tema onde ainda há muito a ser garimpado.
1. Conceito de milagre (o que é milagre?)
Antes de iniciar nosso estudo é necessário compreender o conceito de milagre. O que é milagre, termo tão usado no meio evangélico, em especial nos meios pentecostal e neopentecostal?
Wilkinson (2004, p. 20) define bem objetivamente o milagre como “uma intervenção divina que provoca um evento que normalmente não ocorreria”.
Para Champlin (1991, p. 266) “os eventos miraculosos são aqueles que ultrapassam daquilo que se poderia esperar de circunstâncias naturais e usuais”.
Aprofundando-se um pouco mais no significado de milagres, Campos, citado por Assis (p. 22), refere-se a milagres como
[...] atos sobrenaturais de Deus realizados na história do mundo e percebidos externamente por testemunhas, atos esses que produziram efeitos sobrenaturais na vida das pessoas de tal forma que reconhecidamente somente Deus poderia realizá-los. [...] É o poder de Deus manifestado de forma singular, fora dos padrões naturais, que causa espanto e admiração nos homens, para consecução de seus decretos.
A “admiração” a que se refere Campos está associada à origem do termo milagre. Quanto a isso Champlin (p. 265) explica que “A palavra ‘milagre’ vem do latim, mirari, ‘admirar-se’. Mirus é um adjetivo latino que significa ‘maravilhoso’, ‘admirável’. Miraculum é alguma ‘maravilha’, um ‘prodígio’, um ‘milagre’.
Santos (2003), faz uma definição de milagre como sendo
[...] um prodígio religioso (aspecto psicológico), uma obra de poder (aspecto da causalidade), um sinal dirigido por Deus (aspecto da intencionalidade). Especialmente nos Evangelhos, é considerado como sinal, isto é, como “palavra plástica” de Deus que interpela o homem e o ajuda a proferir um ato de fé na mensagem transmitida por Cristo. Ou seja, os milagres são sinais divinos que não podem dar-se separados ou isolados da Revelação de Deus à qual pertencem e que expressam.
As definições acima tratam do assunto do ponto de vista teológico, mas a filosofia também se ocupa do tema. No caso de Japiassú e Marcondes (2006, p.188) a definição é muito parecida com as que apresentam a teologia. Para esses autores, milagre é um “Fato extraordinário, inesperado e inexplicável pelas leis naturais. Fenômeno excepcional que ocorre por força da ação direta de Deus e, por esse motivo, possui um significado religioso especial. ‘As coisas feitas por Deus, fora das causas por nós conhecidas, são chamadas de Milagres’ (Tomás de Aquino).”
As conceituações apresentadas dão conta de esclarecer o que é milagre, no entanto, deixam uma área considerável a ser explorada no campo da definição. Diante disso, propomos conceituar milagre de uma forma mais complexa, visando maior aprofundamento no tema. Assim, aplicaremos neste estudo o seguinte significado ao termo:
Evento executado por Deus através de Sua própria Pessoa, ou através de humanos ou seres angelicais, canais, ferramentas ou instrumentos que lhe aprazem, visando, com objetivo específico, alterar, modificar, intervir ou interferir em leis: (1) naturais (nos campos físico, químico e biológico); (2) cognitivas; (3) afetivas (nos campos emocional e moral); e (4) espirituais. No entanto, não se pode limitar o termo apenas a estes quatro grupos de leis, haja vista que se tem observado intervenções milagrosas em leis (5) sociais (nos campos sociológico, político e econômico). Desta forma, milagres são ações de Deus que envolvem o homem, a natureza onde ele vive e a sociedade por ele formada.
A complexidade e extensão deste conceito carecem de melhor compreensão, assim, vejamos em detalhes essa definição.
O milagre é um “Evento” por ser um acontecimento ou um fato limitado no tempo – se dá num determinado momento e lugar, num aqui e agora. É “executado por Deus”, pois mesmo quando não se dá “através de Sua própria pessoa” é dEle a ordem para a sua execução. É bem verdade que forças do mal operam milagres, como a própria Bíblia nos diz (Mateus 24.23-24 e muitos outros textos), mas aqui estamos falando do milagre genuíno, que é o milagre divino. “Ou através de humanos ou seres angelicais”, pois Deus usa para isso tanto pessoas como anjos. O milagre pode ser executado ainda através de “canais, ferramentas ou instrumentos”, pois Deus não depende de anjos ou pessoas para operar um milagre, podendo fazê-lo através de situação e/ou circunstância quaisquer, ou mesmo diretamente a partir de Sua Pessoa. Esses meios, pessoas ou seres são escolhidos de várias formas “que lhe aprazem”, pois o faz segundo a Sua vontade e prazer. O milagre tem sempre um “objetivo específico”, pois o Senhor nada faz ao acaso ou sem motivo. Trata-se de um evento que se propõe a “alterar, modificar, intervir ou interferir” em alguma coisa, do contrário não ocorreria ou não teria sentido de ser. A coisa modificada o é através de alteração de “leis” que já estão estabelecidas, pois as coisas “naturais” são regidas por leis da física, da química ou da biologia. Os milagres interferem ou alteram também leis nas esferas “cognitiva”, visto que alcança o intelecto, e “afetiva”, visto que envolve e altera as emoções e a moralidade do ser humano. Também se dão como interferência em “leis sociais”, com resultados nos “campos sociológico, econômico e político”, pois Deus é Senhor e controlador da história de povos e nações.
1.1 Semeionologia: estudo sobre os milagres
Não há na teologia sistemática um nome que defina a doutrina dos milagres. Por exemplo, a doutrina sobre o homem é chamada na teologia de antropologia, do grego antropos = homem e logia = estudo; a doutrina sobre as últimas coisas, eventos apocalípticos, volta de Cristo, etc. é chamada de escatologia, do grego éschatos = último e logia = estudo. Os termos que designam a teologia aparecem em grego, principalmente por ser esta a língua na qual o Novo Testamento foi escrito.
Assim, propomos no presente trabalho o preenchimento desta lacuna, dando um nome à doutrina do milagre, classificando-a na teologia sistemática com o neologismo[3]semeionlogia” ou “semeionologia”. O termo é derivado do grego sêmeion (shmei~on), que significa sinais. Lembrando que o termo milagre deriva de miraculum, tradução latina do grego sêmeion.
2. Exemplos na Bíblia de milagres conforme a definição proposta
Vejamos, então, alguns exemplos e referências bíblicas das formas de milagres apresentadas anteriormente.
Primeiramente analisaremos os milagres e suas execuções: (1) Milagre executado pelo próprio Deus; (2) Milagre executado por servos de Deus; (3) Milagre executado por anjos de Deus; e (4) Milagre executado através de outros meios. (Ver quadro 01 na p. 16).
Em seguida propomos analisar os milagres e suas respectivas alterações de leis: (1) Alteração de lei natural no campo físico; (2) Alteração de lei natural no campo químico; (3) Alteração de lei natural no campo biológico (Ver quadro 02 na p. 16); (4) Alteração de lei no campo cognitivo; (5) Alteração de lei no campo afetivo (emocional e moral); (6) Alteração de lei no campo espiritual (Ver quadro 03 na p. 17); (7) Alteração de lei no campo social resultando em alterações sociológica, econômica e política (Ver quadro 04 na p. 17). 
Para cada tipo de análise (execuções e alterações de leis) apresentamos um exemplo com sua respectiva referência bíblica. Como o objetivo aqui é indicar a possibilidade de cada uma das formas relacionadas, limitamo-nos a um, dois ou no máximo três exemplos bíblicos para cada forma milagrosa. Em apenas uma análise – a que trata de milagre no campo social resultando em alterações sociológica, econômica e política – usaremos, além do exemplo bíblico, um fato da história contemporânea, a saber, o ressurgimento de Israel como Estado Político em 1948.
2.1. Os milagres e suas execuções
2.1.1. Milagre executado diretamente pelo próprio Deus
A Criação do céu e da terra e de tudo o que neles há – incluindo o ser humano – deve não somente ser considerada como milagre, mas cabe a ela o status de “milagre fundante”, por se tratar da ação milagrosa que funda a ação de Deus em favor do homem em toda a história. Talvez a classificação da Criação como milagre nos coloque diante da seguinte questão: que leis da natureza Deus alteraria, uma vez que a natureza ainda não estava formada? A resposta está no ex nihilo, termo latino que significa “a partir do nada”. Em outras palavras, a Criação é um milagre, pois se deu a partir do nada. Assis (p. 20) inclui a Criação na categoria de milagres que “abarca aqueles eventos em que o efeito não teve causa secundária, ou seja, a causa de todos os efeitos do evento é Deus”, que agiu nela diretamente. O texto bíblico que fala da Criação encontra-se em Gênesis, cap. 1.
2.1.2. Milagre executado por servos de Deus
O cajado de Moisés se transforma em serpente quando jogado ao chão e se torna em cajado novamente ao ser pego por ele. A narrativa bíblica (Êxodo 4.2-4) diz que, falando a Moisés “[...] o Senhor disse-lhe: Que é isso na tua mão? E ele [Moisés] disse: Uma vara. E ele [o Senhor] disse: Lança-a na terra. Ele a lançou na terra, e tornou-se em cobra; e Moisés fugia dela. Então, disse o Senhor a Moisés: Estende a mão e pega-lhe pela cauda (E estendeu a mão e pegou-lhe pela cauda, e tornou-se em vara na sua mão)”. Esse milagre se repete mais adiante, quando Moisés e seu irmão Arão, cuja vara é usada desta vez, interpelam a Faraó (7.10-12). O rei do Egito então mandou chamar seus “sábios e encantadores”, “magos do Egito” que imitaram o feito de Moisés, com suas mágicas. Aí ocorre um novo milagre, pois “a vara de Arão tragou a vara deles”, numa demonstração de que nenhuma mágica se compara a um milagre operado por Deus.
2.1.3. Milagre executado através de anjos de Deus
A narrativa bíblica (Gênesis 19.1-11) conta que a situação moral de Sodoma nos tempos de Abraão era tão deplorável que Deus decide destruir a cidade. Como resultado da intercessão de Abraão em favor de Ló, Deus envia à cidade dois anjos com a missão de destruí-la, porém, salvando a família do sobrinho do patriarca. Por insistência de Ló, os dois homens (era esta a aparência dos anjos) entraram em sua casa para lavar os pés, fazer uma refeição e ali passar a noite. Ocorre que os homens da cidade, jovens e velhos, queriam que Ló pusesse para fora seus dois visitantes, pois queriam abusar deles sexualmente. Como Ló insistia em persuadi-los a mudar de ideia, inclusive oferecendo-lhes suas duas filhas virgens para serem abusadas em lugar dos visitantes, aqueles homens decidiram invadir sua casa. Os dois anjos então fizeram Ló entrar com eles na casa, fecharam a porta e feriram de cegueira àqueles homens maus, de sorte que eles não conseguiram encontrar a porta.
A ação dos dois homens foi milagrosa, pois feriram seus algozes sem tocar neles, pois estavam para o lado de dentro com Ló e sua família.
2.1.4. Milagre executado através de outros meios
Segundo a narrativa encontrada em Números 22, o enigmático profeta Balaão recebe em Petor, sua cidade, uma comitiva enviada por Balaque, rei de Moabe, com uma proposta financeira para amaldiçoar os filhos de Israel. A causa do pedido era o avanço militar de Israel. “Eles já haviam conquistado Jericó e certas regiões dos moabitas, e os midianitas poderiam ser as próximas vítimas”, comenta Champlin (1991, p. 433). Ocorre que Deus falou com Balaão, orientando-o a não atender ao pedido de Balaque, pois o povo de Israel era bendito por Ele. A comitiva retorna a Moabe e transmite ao rei a negativa do profeta. Entretanto, Balaque insiste, enviando a Balaão uma nova comitiva, desta vez com homens mais honrados que os primeiros e com uma proposta financeira mais vantajosa. O profeta acaba cedendo ao convite e viaja de volta com a comitiva, rumo a Moabe. Irado, Deus intercepta a comitiva, através do Anjo do Senhor. A jumenta na qual o profeta montava viu o Anjo e, espremendo-se numa parede, apertou o pé de Balaão que passou a espancá-la. A Bíblia diz que então “o Senhor abriu a boca da jumenta”, que passou a falar com seu dono. Balaão passou a discutir com o animal, até que o Senhor abriu seus olhos para que também visse o Anjo do Senhor, entendendo o desígnio de Deus para aquela situação.
Como pode um animal emitir sons diferentes daqueles para os quais sua natureza foi desenvolvida, passando a falar, se não por um milagre?
3. Os milagres e suas respectivas alterações de leis
O tópico que trata dos milagres e como eles alteram leis existentes pode ser desmembrado da seguinte forma: (1) alterações nas leis que regem as Ciências da Natureza (Física, Química e Biologia); (2) alterações nas leis em áreas abstratas da vida humana (Cognição, Afetividade e Espiritualidade); e (3) alterações em leis sociais, a saber, as que regem as teorias sociológicas, econômicas e políticas.
3.1. Alterações de leis que regem as Ciências da Natureza
3.1.1. Alteração de lei natural no campo físico
Um exemplo de alteração de uma lei natural da física é visto no milagre operado pelo profeta Eliseu (2 Reis 6.1-7), fazendo um machado sem cabo boiar nas águas do rio Jordão. O texto narra que o profeta e seus discípulos estavam à margem do rio cortando troncos para construírem um local de reunião maior para a casa de profetas. Em dado momento, enquanto um deles cortava uma árvore, o ferro do machado escapou e afundou na água. O discípulo que usava o machado se desesperou, pois, conforme disse ao profeta, a ferramenta era emprestada. Eliseu perguntou-lhe onde o machado havia caído e ao ser informado do local, cortou uma vara e jogou na água, no lugar onde o machado havia afundado, fazendo-o boiar.
Esta foi uma aula prática de milagre, pois um ferro de machado não pode, pela lei da física, boiar. Mesmo um machado com cabo afunda se jogado num rio.

3.1.2. Alteração de lei natural no campo químico
Usemos como exemplo de alteração de lei natural no campo químico o clássico milagre operado por Jesus e que inaugura as práticas de sinais e prodígios de seu ministério. Trata-se da água transformada em vinho num casamento em Caná da Galileia (João 2.1-11). Não se sabe o motivo, mas a realidade é que durante a festa o vinho se acabou. Essa falta chamou a atenção de Maria, mãe de Jesus, que lhe comunicou o fato. Após um diálogo com ela
Então Jesus disse aos empregados [da casa]: “Encham as talhas de água”. Quando isso foi feito, ele disse: “Tirem um pouco e levem ao mestre de cerimônias”. [...] Quando o mestre de cerimônias experimentou a água, que já tinha sido transformada em vinho, não sabendo de onde vinha (embora os empregados soubessem), chamou o noivo e disse: “O senhor é diferente de todos os outros! Geralmente o dono da festa serve primeiro o vinho melhor, e depois, quando todo mundo está satisfeito e não se importa mais, o vinho inferior é servido. Mas o senhor guardou o melhor para o fim!” (Versão da Nova Bíblia Viva, vs. 7-10).
3.1.3. Alteração de lei natural no campo biológico
A ressurreição de Lázaro (João 11.1-44) e as demais ressurreições operadas por Jesus – o filho da viúva de Naim (Lc 7.11-17) e a filha de um oficial (Mt 9.18-19, 23-26; Mc 5.21-24, 35-42; Lc 8.40-42,49-56) – podem ser categorizadas como milagres no campo biológico e também físico. É um tipo de evento que altera leis da biologia, pois restaura as células orgânicas que foram decompostas pela falta de circulação sanguínea. É ainda um evento que provoca alterações em leis da física, conforme explica Assis (p. 22) ao comentar a ressurreição de Lázaro:
Assim como todos os demais corpos de pessoas falecidas, havia forças químicas que operavam dissolução em seu corpo, quando este estava inerte no túmulo. Certamente, deixado em seu estado natural, o corpo de Lázaro iria apodrecer e se decompor. No entanto, houve a cessação e a modificação de tais forças químicas no corpo inerte de Lázaro, no momento em que Jesus ordenou que o mesmo saísse do túmulo.
3.2. Alterações de leis em áreas abstratas da vida humana
A exemplo do que ocorre nos campos concretos (Física, Química e Biologia), os campos abstratos da vida humana (intelectual, afetivo e espiritual) também têm suas leis, todas elas com causas e efeitos. A diferença está apenas no fato de que as leis do campo abstrato não podem se comprovar concretamente, apenas por experimentos e observações. Tais leis são demonstradas em teorias desenvolvidas e comprovadas por autores em suas respectivas áreas de estudo. O fato dessas leis não se comprovarem senão abstratamente, lhes asseguram certa identificação com a teologia e com a filosofia, cujos materiais de estudo também não são concretos. Em outras palavras, os milagres em campos abstratos da vida humana têm o mesmo valor que o atribuído aos milagres materializados, como curas, por exemplo.
Campo cognitivo - Por exemplo, Jean Piaget (1896-1980) descobre a existência de leis que operam no campo cognitivo ao estudar o desenvolvimento da inteligência na criança, elaborando sua psicologia genética, organizada em quatro estágios: (1) sensório motor (de 0 a 2 anos); (2) pré-operacional (de 2 a 7 anos); (3) operacional concreto (7 a 12 anos); e (4) operacional formal (a partir de 12 anos).
A teoria piagetiana vai muito além dos quatro estágios do desenvolvimento intelectual na criança. “Para explicar como e por que ocorre o desenvolvimento cognitivo, Piaget usa quatro conceitos básicos: 1. esquema; 2. Assimilação; 3. acomodação; e 4. equilibração”. (Barros, 1996, p. 44).
Obviamente há outras formulações teóricas sobre o desenvolvimento cognitivo com suas respectivas leis e seria impossível tratar de todas elas aqui. As teorias behaviorista de Skinner, humanista de Rogers e histórico-cultural de Vygotsky são apenas algumas delas.
Campo afetivo - A afetividade envolve duas áreas fundamentais do desenvolvimento humano: emocional e moral. O termo afetividade não pode ser confundido com afeto ou afetuosidade. “A afetividade é a forma como colocamos energia nas emoções. De acordo com a maneira como fazemos isso, somos impulsionados ou não a realizarmos esta ou aquela tarefa, deste ou daquele jeito”. (Gervoni, 2013). Esse campo também tem suas leis próprias.
O pediatra e psicanalista Winnicott (1983), entre outros, desenvolveu estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, formulando importantes teorias nesta área. Entre as suas concepções se destacam a relação de maternagem, seu consequente vínculo entre a mãe e o bebê, como essas coisas interferem no desenvolvimento psicoafetivo da criança e suas consequências na idade juvenil e adulta.
Quanto à moralidade, Piaget (1994) estudou o desenvolvimento do juízo moral na criança e as relações desse desenvolvimento com as regras, com a coação imposta pelo adulto, com a mentira, com a justiça e com as autoridades, etc.
Campo espiritual - Repleto de leis com causas e efeitos, a área espiritual é considerada pela maioria dos teólogos como de maior importância entre as áreas abstratas. Talvez essa concepção tenha se desenvolvido a partir da ideia de um ser humano formado por “compartimentos”, se não incomunicáveis, com pouca ligação entre si. A doutrina antropológica tricotomista – o homem formado por corpo, alma e espírito – parece ter sustentado essa imaginação ao longo dos tempos. Mesmo pensando tricotomistamente, podemos compreender a íntima e profunda relação entre o corpo, a alma e o espírito, concluindo que o desenvolvimento de um depende do outro. O ser humano deve ser visto holisticamente, sem que isso signifique uma aproximação do movimento da Nova Era, do esoterismo ou algo que o valha.
3.2.1. O milagre da conversão e o seu caráter universal
Antes de apresentarmos exemplos bíblicos de milagres nos campos cognitivo, afetivo e espiritual, vamos falar do milagre da conversão do ser humano como um evento de caráter universal. Essa classificação tem duas razões. A primeira delas é que o evento da salvação com suas dimensões – veremos essas dimensões adiante – passa necessária e obrigatoriamente por esse milagre. Ou seja, ninguém pode ser alcançado pela salvação sem antes passar pela conversão. Em segundo lugar esse milagre é universal por envolver alterações em leis nos três campos: cognitivo, afetivo e espiritual. Se não, vejamos.
Campo cognitivo - A conversão se dá através da transformação intelectual, pois o homem passa não somente a pensar, mas a aprender de forma diferente, pelo Espírito de Deus, através da Sua Palavra. “De sorte que a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus”. (Romanos 10.17). Ao se converter, o ser humano passa por uma “metanoia” (transformação da mente) que o tira de uma “paranoia” (confusão da mente).
Campo afetivo - Mas a conversão se processa ainda pela transformação afetiva, modificando setores emocionais e morais da nossa vida. Quando uma pessoa se converte experimenta milagres – alterações de leis estabelecidas – em suas emoções e em seu juízo moral. As emoções e a moralidade da pessoa convertida são diferentes das que possuía antes da conversão.
Campo espiritual - Por último, a conversão muda o espírito do homem, que passa agora a ser controlado pelo Espírito de Deus, possibilitando que o fruto do Espírito predomine sobre as obras da carne. Em sua carta aos Gálatas (5.16-17), o apóstolo Paulo diz:
Eu os aconselho a obedecerem somente as instruções do Espírito Santo. Ele lhes dirá aonde ir e o que fazer, e assim vocês não estarão sempre satisfazendo os desejos da natureza pecaminosa. Porque nós por natureza gostamos de fazer as coisas ruins que são justamente o oposto das coisas que o Espírito nos manda fazer; e as coisas boas que desejamos fazer quando o Espírito nos domina são justamente o oposto dos nossos desejos naturais. (Versão Nova Bíblia Viva).
Em João 16.8 Jesus fala do papel do Espírito Santo com o tríplice objetivo de convencer o mundo do (1) pecado, da (2) justiça e do (3) juízo. Esse ato divino altera leis na área cognitivo-intelectual, pois o convencimento se dá na mente; altera leis na área psicoafetiva, pois transforma beneficamente as emoções e modifica nossa compreensão moral acerca do “juízo” de Deus; e altera leis na área espiritual, como veremos adiante (Ver tópico 3.2.4. Alteração de lei no campo espiritual).
3.2.2. Alteração de lei no campo cognitivo
As leis que regem o intelecto humano são passíveis de alterações milagrosas constantes. Além do ato de o Espírito Santo convencer o homem do pecado, da justiça e do juízo, que como já vimos é um milagre que se dá também no intelecto, a sabedoria de Salomão pode ser considerada como resultado de uma intervenção divina no seu comportamento intelectual. Em 2 Crônicas 1.10 o filho e sucessor de Davi no reino fala a Deus da seguinte maneira: “Peço que o Senhor me dê sabedoria e conhecimento para governar esse povo. Pois quem pode, sozinho, dirigir uma nação tão grande como esta?” (Versão Nova Bíblia Viva). No verso 12 lemos que Deus concede sabedoria e conhecimento a Salomão. Obviamente o rei já tinha sabedoria e conhecimento, mas a partir de então tais expertises lhe foram multiplicadas de forma sobrenatural, através de alterações de leis cognitivas.
Outro exemplo da ação milagrosa de Deus alterando leis no intelecto de uma pessoa é o do profeta Daniel (cap.1), que por haver decidido “[...] no seu coração não se tornar impuro consumindo as iguarias do rei [...]” Nabucodonosor, foi abençoado “[...] com especial sabedoria e inteligência em toda cultura e ciência [...]”, além da capacidade de “interpretar sonhos e visões de todos os tipos”. (Versão King James Atualizada).
3.2.3. Alteração de lei no campo afetivo
A nossa afetividade – tanto no aspecto emocional quanto no aspecto moral – também é alvo dos milagres de Deus. A Bíblia traz diversos exemplos de ações desta natureza. Só para relembrar, ao ser convencido pelo Espírito Santo dos seus pecados, da justiça e do juízo o ser humano passa por um processo milagroso que altera nele leis emocionais e morais.
Vejamos apenas um exemplo bíblico em João 4.4-26, que fala da mulher samaritana abordada por Jesus. A mulher já estava no sexto relacionamento conjugal e a fala de Jesus no vs. 18 parece demonstrar que seu atual homem não era totalmente compromissado com ela. No contexto da época isso era um indicativo de desajuste moral e tanto naquele tempo quanto hoje, aponta para desajustes emocionais que impediam aquela mulher de se relacionar por muito tempo com o mesmo homem, levando-a a constantes trocas de marido. Na sequência o texto mostra que a samaritana entrou num processo de alteração das leis emocionais e morais que direcionavam sua vida, pois ela se converteu e pregou Jesus a outras pessoas.
O Salmo 147.3 também fala de transformação afetiva operada por Deus, ao dizer que “Só ele devolve a alegria aos tristes de coração e cura as suas feridas” (Versão Nova Bíblia Viva) emocionais.
3.2.4. Alteração de lei no campo espiritual
A fonte das leis que agem no campo espiritual é a Bíblia. Para citar apenas um exemplo, o apóstolo Paulo (Romanos 7) se refere a uma lei que se desmembra três leis que agem no campo espiritual, reverberando nos campos cognitivo, afetivo e físico. No versículo 21 ele introduz o assunto sobre esta lei, dizendo: “Acho, então, esta lei em mim: que quando quero fazer o bem, o mal está comigo”. Como vemos, trata-se de uma lei espiritual que nos impede (lei impeditiva) ou tenta nos impedir de fazer o bem. Nos versos seguintes Paulo explica a lei em seus três “artigos”.
Versículo 22 (1º artigo): “Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus”. Ele quer dizer que sua mente transformada deseja cumprir a lei de Deus.
Versículo 23 (2º artigo): “Mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a lei do meu entendimento [...]”. Aqui Paulo fala de uma segunda lei, “outra lei”, que batalha contra a primeira, “lei do meu entendimento”, e o deixa refém de uma terceira lei.
Versículo 23b (3º artigo): “[...] e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros”. A “lei do pecado”, que é somatizada, é a terceira lei da qual ele fica refém.
Como dissemos, esta lei reverbera nos campos cognitivo, afetivo e físico. No cognitivo por estabelecer uma guerra cujo front é a mente humana. No afetivo por agitar suas emoções – “Miserável homem que sou...”, diz ele no v. 24. E no campo físico por envolver a “lei do pecado” que está nos seus membros.
Uma outra lei - O contexto nos mostra que este Paulo não é um Paulo antes da conversão – como querem alguns – mas um discípulo que, mesmo transformado por Cristo, vivencia o eterno conflito da luta do Espírito contra a carne (Gl 5.17). Este Paulo sou eu e você, dependentes de repetidas intervenções do Espírito nesta lei estabelecida em nós. Ou seja, somos dependentes de repetidos milagres nos campos cognitivo, afetivo e espiritual.
Estes repetidos milagres se dão através de uma outra lei citada pelo apóstolo em Romanos 8.2: “Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte”.[4]
3.3. Alteração de lei no campo social resultando em alterações sociológica, econômica e política. 
As ciências sociais contemplam, entre outras áreas, os âmbitos da sociologia, antropologia, economia e política. Da mesma forma como ocorre nas ciências da natureza e na psicologia, as ciências sociais também têm suas leis, descobertas ou destacadas por diversos teóricos.
Um dos mais importantes teóricos da sociologia é Karl Marx (1818-1883), cujos estudos apontam para as leis que regem a relação entre o capital e o trabalho, entre o indivíduo e a sociedade, etc. Através de conceitos como a “mais valia”, “ideologia”, as “ideias da classe dominante”, entre outros, Marx construiu suas teorias sobre a forma como o capitalismo oprime a classe trabalhadora e apontou para as possibilidades do socialismo e do comunismo.
Outro teórico clássico da sociologia é Emile Durkheim (1858-1917). Considerado fundador da sociologia científica com suas leis sobre a sociedade, o indivíduo, as normas, a criminalidade e o suicídio. “Durkheim focalizou em sua concepção sociológica as estruturas e as instituições sociais, considerando as novas relações de poder que se instauravam em sua época”. (ULBRA, 2008).
Outro ícone da sociologia é o alemão Max Weber (1864-1920), um revelador da natureza da ciência social e da ciência histórica, conforme Japiassú e Marcondes (2006). Autor do clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-5), obra “na qual procura mostrar que uma análise estritamente econômica seria insuficiente para explicar o surgimento do capitalismo, devendo ser levados em conta elementos éticos, religiosos e culturais.” (Japiassú e Marcondes, 2006, p. 281). Weber desenvolveu a teoria dos quatro tipos de ação social: (1) ação social tradicional; (2) ação social afetiva; (3) ação social racional com relação a valores; e (4) ação social com relação afins. (ULBRA, 2008).
Há situações em que as leis das ciências sociais são alteradas milagrosamente, com desdobramentos na sociologia, na economia e na política, como intencionaremos demonstrar a seguir.
3.3.1 O êxodo do povo hebreu do Egito
Narrados do livro de Êxodo até o livro de Josué, os eventos que marcaram a saída do povo hebreu do Egito e a sua instalação como nação na Terra Prometida, formam uma sequência de milagres divinos.
Champlin explica que os milagres que envolveram o êxodo “podem ser classificados em três grupos: 1. milagres que provaram aos israelitas que Moisés tinha sido realmente enviado por Deus. 2. o milagre das pragas que caíram sobre o Egito como castigo. 3. milagres de providência e proteção divina no deserto.” (1991-B, p. 630).
Entretanto, esses milagres não cessaram neles próprios, resultando em implicações sociológicas não menos milagrosas, provocando alterações na economia e na política tanto do Egito – que teve sua mão de obra escrava cessada – quanto dos povos da Palestina, cujas terras foram ocupadas na implantação de Israel, a nova nação. É possível afirmar que as alterações sociológicas, econômicas e políticas decorrentes do êxodo foram milagrosas quando consideramos que elas só ocorreram em virtude dos milagres que se sucederam na saída do povo.
A peregrinação pelo deserto por quarenta anos foi, por ela só, um verdadeiro milagre sociológico. Isso para não falarmos da quantidade de pessoas envolvidas neste empreendimento. Calcula-se que em torno de dois milhões de pessoas deixaram o Egito por ocasião do êxodo. A Bíblia fala em 600 mil homens, além das mulheres, crianças e estrangeiros (Êxodo 12.37-38). Se considerarmos que somente homens com idade de pegar em armas foram contados entre os 600 mil – os hebreus saíram do Egito armados para guerrearem contra outros povos (Ex 13.18) –, o número de homens pode chegar a um milhão. Se estimarmos que para cada homem houvesse em torno de uma a duas mulheres e duas a três crianças, a população hebreia pode ter ultrapassado a casa dos cinco milhões de peregrinos.
Ao comentar a importância do êxodo na formação do Antigo Testamento, Champlin (1991-B, p. 631) afirma que o episódio “[...] foi um marco na história de Israel, um evento que inspirou os escritores do resto do Antigo Testamento. Era mencionado como um período em que Deus exibiu seu poder e sua redenção, em favor de seu povo, como um exemplo do que o poder divino pode fazer em favor de um povo que anda na retidão.
3.3.2. O ressurgimento de Israel como nação em 1948
O ressurgimento de Israel como nação em 1948 (decidido na histórica votação da ONU em 29 de novembro de 1947), também pode ser considerado como um milagre sociológico, se considerarmos que este evento se deu em cumprimento de profecias do Antigo Testamento. Outro fator importante é que o ressurgimento político de Israel tem implicações na discussão teológica sobre a restauração escatológica e soteriológica da nação, doutrinas que discutem a salvação dos judeus como povo eleito de Deus.
Quanto às profecias e seus desdobramentos, assim como quanto ao tema da restauração de Israel, não trataremos no presente artigo para não fugir de seu escopo.
A seguir apresentamos quatro quadros demonstrativos dos milagres discutidos até aqui.
Os milagres e suas execuções
Exemplo
Referência
Milagre executado diretamente pelo próprio Deus
A Criação do céu e da terra e de tudo o que neles há e a Criação dos seres humanos.
Gênesis 1
Milagre executado por servos de Deus
O cajado de Moisés se transforma em serpente quando jogado ao chão e se torna em cajado novamente ao ser pego por ele.
Êxodo 4.2-4
Milagre executado através de anjos de Deus
Dois anjos ferem de cegueira os homens que queriam invadir a casa de Ló, impedindo que achassem a porta.
Gênesis 19.11
Milagre executado através de outros meios
A fala da jumenta de Balaão lhe dando orientações espirituais.
Números 22.20-30
Quadro 01

Os milagres e suas respectivas alterações em leis concretas
Exemplo
Referência
Alteração de lei natural no campo físico
O machado que boiou numa ação de Eliseu.
2 Reis 6.1-7
A multiplicação do azeite da viúva pelo profeta Elias.
I Reis 17.8-16
Alteração de lei natural no campo químico
Jesus transforma a água em vinho.
João 2.1-11
Alteração de lei natural no campo biológico
Ressurreição de Lázaro.
João 11.1-44
A figueira que se secou.
Mateus 21.18-19
Quadro 02

Os milagres e suas respectivas alterações em leis abstratas
Exemplo
Referência
Alteração de lei no campo cognitivo
O ato de o Espírito convencer o homem do pecado, da justiça e do juízo é um milagre e se dá no intelecto.
João 16.6-8
A sabedoria de Salomão pode ser considerada como resultado de uma intervenção divina no seu comportamento intelectual.
2º Crônicas 1.7-12.
Daniel obteve uma inteligência dez vezes maior que a dos demais colegas, após uma decisão espiritual.
Daniel 1
Alteração de lei no campo afetivo
A cura da alma da mulher samaritana.
João 4.4-26
A cura das feridas do coração (alma).
Salmo 147.3
Alteração de lei no campo espiritual
A mesma ação do Espírito em convencer o homem no campo cognitivo alcança o seu espírito, operando nele os milagres da justificação, santificação e glorificação, ações componentes da salvação.
João 16.6-8, Romanos 4.4-8, 1.7 e 8.30
Quadro 03

Alteração de lei no campo social resultando em alterações sociológica, econômica e política. 
O êxodo do povo hebreu do Egito e sua instalação na Terra Prometida foi um milagre operado por Deus com implicações sociológicas, provocando alterações na economia e política tanto do Egito quanto da nova nação, Israel.
Êxodo e Josué
O ressurgimento de Israel como nação em 1948 também pode ser considerado como um milagre sociológico, se considerarmos que este evento se deu em cumprimento de profecias do Antigo Testamento.
Isaías 11.11-12 e 66.8 e Amós 9.14-15
Quadro 04
4. A extensão da lista de milagres na Bíblia
Até então apresentamos diversos milagres conforme suas classificações de acordo com a definição apresentada neste trabalho. Entretanto, a relação de milagres na Bíblia é muito mais extensa que isso. Para ficarmos somente no Novo Testamento, nele figuram pelo menos 15 categorias de milagres realizados diretamente por Jesus, distribuídos em aproximadamente 45 referências nos quatro Evangelhos. Se considerarmos como milagre as expulsões de demônios – há teólogos que não consideram o exorcismo como milagre – realizadas pelo Mestre, essa lista sobe para 16 categorias e 56 referências.
Esses milagres estão distribuídos em: (1) transformação da água em vinho (João 2.1-11); (2) alimentação de multidões (Mateus 14.13-21 e 15.32-39, Marcos 6.30-44 e 8.1-10, Lucas 9.10-17, João 6.1-15); (3) calma de tempestade (Mateus 8.23-27, Marcos 4.35-41, Lucas 8.22-25); (4) ressurreição de mortos (Lucas 7.11-17 e João 11.1-44); (5) pesca maravilhosa (Lucas 5.1-11); (6) andar sobre as águas (Mateus 14.22-33, Marcos 6.45-52 e João 6.16-21); (7) cura de um leproso (Mateus 8.1-4, Marcos 1.40-45 e Lucas 5.12-16 e 17.11-19); (8) restauração de vista aos cegos (Mateus 9.27-31 e 20.29-34, Marcos 10.46-52 e Lucas 18.35-43); (9) cura de um surdo-mudo (Marcos 7.31-37); (10) cura de paralíticos e aleijados (Mateus 9.1-18 e 12.9-14, Marcos 2.1-12 e 3.1-16, Lucas 5.17-26 e 6.6-11); (11) cura de muitas mulheres (Mateus 9.18-26 e 15.21-28, Marcos 5.21-43 e 7.24-30 e Lucas 8.1-13, 40-56 e 13.10-17); (12) cura do criado de um capitão romano (Mateus 8.5-13 e Lucas 7.1-10); (13) cura da sogra de Pedro (Mateus 8.14-15, Marcos 1.29-31 e Lucas 4.38-39); (14) cura do filho de um oficial (João 4.46-54) e (15) ressurreição da filha de um oficial (Mateus 9.18-19 e 23-26, Marcos 5.21-24 e 35-42 e Lucas 8.40-42 e 49-56).
A expulsão de demônios aparece em Mateus 8.28-34, 12.22-37 e 17.14-21; em Marcos 1.21-28, 3.20-30, 5.1-20 e 9.14-29; e Lucas 4.31-37, 8.26-39, 9.37- 43 e 11.14-23.
5. Leis naturais “revogadas” por leis sobrenaturais
É possível que Deus já tenha desenvolvido planejada e antecipadamente todos os recursos milagrosos os quais disponibiliza aos seus filhos de acordo com Sua Soberana Vontade. Deus não é um Deus de improvisos e, portanto, é acreditável que ao “quebrar” uma lei da natureza estabelecida por Ele, o faça se valendo de outra lei já criada, mas desconhecida de nós.
Essa discussão é histórica na teologia e possivelmente tenha começado com Agostinho, que defendia uma naturalidade dos mesmos, afirmando, no entanto, uma naturalidade do ponto de vista de Deus (Champlin, 1991). Ou seja, os milagres são vistos como sobrenaturais para nós, mas naturais para o Criador.
Tomás de Aquino concordava em certa medida com Agostinho, mas distinguia duas ordens da natureza, sendo uma conhecida por Deus e outra conhecida por nós.
Champlin (1991, vol. 4, p. 266) afirma que
Deus parece contradizer ou quebrar alguma lei natural, mas ele simplesmente aplica alguma lei superior, anulando outra lei, inferior. Há uma suprema lei da natureza, dentro da qual todos os milagres podem ser ajustados. O argumento filosófico-teológico dessa abordagem é que Deus, que estabeleceu as leis naturais, jamais agiria contrariamente a Si mesmo, quebrando, ocasionalmente, e por motivos especiais, essa lei.
Sendo assim a natureza conhecida por Deus – como afirmou Tomás de Aquino – e suas leis superiores referidas por Champlin, situam-se numa dimensão ainda desconhecidas por nós, nos fazendo compreender os eventos milagrosos como sobrenaturais.
6. O milagre como base do Plano de Salvação
A realidade semeionológica ganha importância quando analisada do ponto de vista da soteriologia (disciplina da Teologia Sistemática que trata da salvação). Há uma quádrupla dimensão milagrosa na execução do Plano de Salvação: (1) encarnação e nascimento virginal de Cristo; (2) ressurreição de Jesus dentre os mortos; (3) a salvação e conversão do ser humano; e (4) a ressurreição e/ou arrebatamento do crente. Esses quatro eventos basilares da salvação são todos milagrosos. A encarnação e o nascimento de Cristo foi um evento primordialmente milagroso pelo fato do Deus Filho haver sido gerado no ventre humano da virgem Maria, por obra do Espírito Santo. A ressurreição de Jesus dentre os mortos, ponto culminante do Plano de Salvação, não só foi um ato milagroso em si, como foi um evento que possibilita a ressurreição do salvo no arrebatamento da igreja – um milagre no passado que possibilita outro no futuro. A conversão e consequente salvação do ser humano, como já vimos (ver item 3.2.1. O milagre da conversão e o seu caráter universal), também se dá milagrosamente. E, por último, o mesmo ocorre com a ressurreição e arrebatamento dos salvos[5]. A ressurreição será um acontecimento terrivelmente inexplicável. Será um evento numinoso – ao mesmo tempo fascinante e amedrontador. Imagine leis sobrenaturais recompondo corpos glorificados em lugar de organismos consumidos pela decomposição, tanto dos salvos que foram sepultados em terra quanto dos que foram lançados no mar. Na mesma dimensão de numinosidade se dará o arrebatamento. Imagine homens, mulheres e crianças sendo “sugados” para cima, ao encontro do seu Salvador. Quanto a estas coisas o apóstolo Paulo nos diz em 1 Coríntios 15.50-52:
Digo-lhes isto, meus irmãos: Um corpo terreno, feito de carne e sangue, não pode herdar o Reino de Deus. Estes nossos corpos mortais não podem herdar o que é imortal. Eis que eu lhes estou contando este segredo maravilhoso: Nem todos morreremos, porém seremos transformados. Tudo acontecerá num instante, num piscar de olhos, quando for tocada a última trombeta. Porque virá do céu um toque de trombeta, e todos os que já morreram, de repente ressuscitarão com novos corpos que jamais morrerão, e todos nós seremos transformados. (Versão Nova Bíblia Viva).

Champlin (1991, p. 268) relaciona outra não menos atraente sequência de milagres que formaram a base para o surgimento do cristianismo, afirmando que
(1) O nascimento virginal de Jesus, (2) a estrela de Belém, (3) o véu do templo estranhamente partido ao meio (4) a ressurreição especial dos mortos por ocasião da ressurreição de Jesus Cristo, sendo que esta última foi o grande milagre que deu origem ao cristianismo. (Numeração acrescentada por nós).

6.1. A quadriga milagrosa da conversão e salvação

Por sua vez, a conversão e salvação do ser humano (terceiro item da quádrupla dimensão milagrosa na execução do Plano de Salvação) apresenta outra quadriga (quatro níveis de sentido) milagrosa. Ao se converter a Cristo o ser humano ganha a salvação, evento composto por quatro fenômenos milagrosos: (1) regeneração; (2) justificação; (3) santificação; e (4) glorificação.
6.1.1. Regeneração
Regeneração significa “ser gerado novamente”. É o milagre que nos ocorre quando somos salvos. É o novo nascimento dito por Jesus a Nicodemos em João 3.3-5. “Aquele que não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus”, disse Jesus. Isso confundiu o fariseu Nicodemos, que perguntou se era possível um homem, sendo velho, entrar novamente no ventre da mãe e nascer. Ao que o Mestre lhe respondeu explicando que “aquele que não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus”, pois – complementou Jesus – “o que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito”.
6.1.2. Justificação
Ser justificado é o mesmo que ser “ficado justo”. Ao sermos alcançados pela salvação passamos do status de condenados para justos, milagre que ocorre numa dimensão espiritual. Trata-se de um processo transformador explicado teologicamente por Paulo em Romanos 3.21-31, onde ele trata da justificação pela fé em Jesus.  
6.1.3. Santificação
No terceiro nível desta quadriga milagrosa ocorre a santificação, processo pelo qual somos “ficados santos”. A santificação não nos torna beatos e muito menos nos promove ao elenco dos santos canonizados da História da Igreja. O sentido teológico de santo é “separado”, condição na qual Deus nos coloca para o seu serviço. Paulo (em sua pregação a Agripa, Atos 26.18) explica que nesse processo somos convertidos das trevas à luz e convertidos do poder de Satanás ao poder de Deus, recebendo “a remissão dos pecados e sorte entre os santificados pela fé” em Jesus.
6.1.4. Glorificação
Diferentemente dos três estágios anteriores, que se dão no presente, a glorificação se dá no porvir. Após a ressurreição e o arrebatamento da igreja, receberemos um corpo glorificado, semelhante ao que teve Jesus após sua ressurreição. Um corpo glorificado não está limitado às leis da natureza física, química ou biológica. Há uma possibilidade teológica de que o corpo glorificado tenha uma psique, uma alma. Neste caso é de se crer que esta psique, igualmente “glorificada”, não esteja sujeita às leis que operam abstratamente na alma humana, recheando-a de neuroses e de sentimentos psicopatológicos como os que nos ocorrem hoje.
Champlin vai dizer que “A glorificação espera-nos ainda no futuro, pois é o aspecto celeste da salvação do homem, aquilo que o Senhor realizará, em último lugar, em favor das almas humanas remidas.” (1991-C, p. 915).
Em Romanos 8.29-30 o apóstolo Paulo esclarece que Deus, aos
que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes [ter a mesma forma] à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou. (Entre colchetes e grifos acrescentados).
Assim, se considerarmos que o cristianismo é o evento histórico que conclui o Plano de Salvação, podemos afirmar que o principal ou o maior dos milagres é a salvação do homem em Cristo Jesus.

7. O milagre e sua relação com os dons manifestacionais
Os milagres guardam uma relação considerável com os dons espirituais. Para muitos estudiosos do assunto os dons podem ser classificados em motivacionais, ministeriais e manifestacionais. Estes últimos são aqueles que tratam de manifestações sobrenaturais do Espírito de Deus no seu exercício, diferentemente dos dons motivacionais ou ministeriais, exercidos por uma pessoa sob a ação do Espírito Santo, mas num âmbito natural das coisas. Por exemplo, o dom de mestre, seja ele ministerial (Ef 4.11) ou motivacional (Rm 12.7) é exercido numa manifestação natural, já o dom de interpretar línguas, por exemplo, é essencialmente sobrenatural.
Em 1 Coríntios 12.7-10, 28 temos uma relação de dons manifestacionais, entre os quais destacamos os dons de curar (v. 9), poder para operar milagres, profecia e variedade de línguas (v. 10). No versículo 28 Paulo explica que “A uns estabeleceu Deus na igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres; depois, operadores de milagres; depois, dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas”.
8. Tratando das questões iniciais
Analisados todos estes aspectos ficamos mais próximos das respostas às questões inicialmente apresentadas neste trabalho, a saber, “Deus ainda faz milagres? e Onde está o meu milagre?” A segunda pergunta depende da primeira, pois se Deus não mais opera milagres, não faz sentido alguém procurar pelo seu.
Outro dado a ser salientado é que a resposta da primeira pergunta não está cercada da obviedade que parece ter. Embora a resposta seja aparentemente óbvia no meio pentecostal, carismático e neopentecostal, há entre esses segmentos pessoas que não estão tão certas do “sim” à primeira questão e, consequentemente, não têm como responder ao “onde” da segunda indagação.
A primeira questão, embora seja muito mais teológica e filosófica que prática, não deixa de estar associada ao cotidiano da fé, interessando, portanto, a todo cristão. A segunda pergunta, ao contrário da primeira, é muito mais prática que teológica, porém, como já vimos é totalmente dependente da primeira. Ela está muito vinculada aos segmentos pentecostal, carismático e neopentecostal, integrando sua terminologia e presente até nos seus jargões.
Para a um considerável número de teólogos e seguidores do meio evangélico e protestante mais conservador, entre eles calvinistas, reformados e batistas tradicionais, a questão já está resolvida: Deus não faz mais milagres, não por não ter poder, mas por haver decidido cessá-los concomitantemente com o encerramento de sua Palavra escrita.
8.1. Deus ainda faz milagres?
8.1.1. Os argumentos teológicos dos que defendem a cessação dos milagres[6]
A maioria das igrejas históricas defende a cessação dos milagres e o faz com bases teológicas fincadas em sua tradição. Benjamim B. Warfield, segundo Assis (p. 11), “credita apenas ao período apostólico a sua ocorrência [de milagres], deixando de lado inclusive os primeiros séculos da igreja cristã.” Warfield argumenta que “há pouca ou nenhuma evidência no todo para as obras miraculosas durante os quinze primeiros anos da igreja pós-apostólica”, possivelmente se referindo à falta de registros históricos de milagres. Mas Assis lembra que para Philip Schaff, um dos maiores historiadores da igreja, os milagres duraram até o século III, com a difusão da igreja e o governo de Constantino. Assis lembra ainda que os pais da igreja – em especial Justino, Tertuliano e Orígenes – não citam em seus escritos nenhum milagre parecido com os descritos no Novo Testamento.
Mas essa posição, longe de ser recente, remonta à Reforma Protestante, pois Martinho Lutero e João Calvino e outros reformadores também defendiam a cessação dos milagres. Lutero até que cria em milagres, mas na sua forma espiritualizada. Para o reformador alemão os milagres ocorriam apenas na alma do crente quando de sua conversão, conforme explicado por Assis.
Calvino (2006, p. 23) escreveu em As Institutas que “já cessaram os milagres de poderes e aquelas operações manifestas que eram distribuídos por imposição de mãos, os quais não subsistiram por muito tempo.” Em seu documento doutrinário o fundador do presbiterianismo argumenta que os milagres da igreja primitiva ocorreram para que
[...] a nova pregação do evangelho e o novo reino de Cristo fossem iluminados e magnificados por milagres inauditos e inusitados; mas quando o Senhor os fez cessar, com isso não abandonou inteiramente sua igreja, mas declarou que seria mui excelentemente manifestada a magnificência de seu reino e a dignidade de sua Palavra.   
8.1.2. Argumentos teológicos favoráveis à continuidade dos milagres
O fato de a história não registrar eventos milagrosos, como parece alegar Warfield, não é um sinal de que os mesmos não ocorreram. A história sempre é escrita pelos que dominam e sob o seu ponto de vista. No dizer de Thomas Carlyle “A história seria dominada por grandes homens, que criam e orientam” (Champlin, 1991-D). Assim, os que escrevem a história o fazem do ponto de vista de seus dominadores e criadores. É preciso saber que área da história não registra eventos milagrosos. A Igreja Católica tem em seus processos de investigação para a beatificação e canonização o registro de um sem número de milagres.
Quanto à posição de Lutero e Calvino e os demais reformadores, é de se compreender que, como combatiam contra a Igreja Católica, precisavam descredenciar suas práticas, entre elas a superstição que cercava os milagres e sua “ligação direta ou indireta aos santos, aos sacrários, às relíquias ou aos sacramentos”. Outra razão é que a Igreja Católica tinha os milagres como forma de comprovar sua legitimidade como igreja sucessora dos apóstolos (Assis, p. 12) e isso precisava ser desconstruído pelos reformadores.
Um fator a ser considerado em favor da atualidade dos milagres é a continuidade da história da igreja de Cristo, que continua sendo construída e escrita ao longo dos séculos. Do fim da era apostólica e início do período dos pais da igreja até nossos dias, sua missão continua. A continuidade de sua missão está associada e condicionada à continuidade dos dons do Espírito e também dos milagres. Afinal, Cristo fundou sua igreja sobre o alicerce dos milagres (nascimento virginal e sua morte e ressurreição) e a levará para o céu de forma milagrosa (arrebatamento e ressurreição dos mortos), o que não justifica um interregno tão longo sem milagres. Ou seja, se o começo e fim são milagrosos, por que o meio não o seria?
8.1.3. Argumentos bíblicos favoráveis à atualidade dos milagres
Os argumentos teológicos se sustentam na Palavra de Deus registrada na Bíblia, onde encontramos os principais argumentos favoráveis à continuidade e atualidade dos milagres. Há vários textos bíblicos que sustentam tal ideia, mas é o bastante a análise de apenas um, como veremos a seguir.
Jesus em sua última aparição depois da ressurreição (Marcos 16), ao orientar seus discípulos sobre o imperativo “Ide por todo mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (v. 15), fala sobre a continuidade dos milagres ao afirmar que “estes sinais seguirão aos que crerem...” (v. 17). De início podemos deduzir da necessária ligação entre o “ide” e os “milagres”, pois se o “ide” é para os dias de hoje – nisso concordam calvinistas, luteranos e os demais reformados – por que os “milagres” não o seriam?
Entretanto, há um agravante no verso 15: Jesus disse que os sinais “seguirão aos que crerem”. Essa afirmativa, muito além de explicar que os milagres não ocorrem porque certas pessoas não creem, mostra a imperiosidade dos milagres. Em outras palavras, Jesus está dizendo que necessária e obrigatoriamente deve haver milagres na missão da igreja em ir por todo mundo e pregar o evangelho a todas as pessoas.
Nas palavras de Jesus, o imperativo não está somente no “ide”, mas também na prática dos sinais. Ou seja, os sinais não são opcionais. Não há como optar por pregar o evangelho sem a operação de milagres.
Na sequencia Jesus elenca (vs. 17 e 18) os sinais obrigatórios da missão: (1) expulsar demônios; (2) falar novas línguas; (3) pegar em serpentes; (4) beber coisas mortíferas sem sofrer dano – estes dois se referem às batalhas que travamos na dimensão espiritual;  e (5) curar enfermos sobre imposição de mãos.
8.2. Onde está o meu milagre?
Cuidada a primeira questão, podemos passar para a segunda. Queremos dizer com isso que se os milagres são atuais podemos começar a responder a segunda pergunta: onde está o meu milagre?

8.2.1. A soberania de Deus
Inegavelmente o milagre, assim como toda dádiva de Deus para seus filhos, está em sua soberania. O tema da soberania de Deus para estar em desuso nos dias atuais, ironicamente nos meios onde mais os milagres são pregados e praticados, entre os pentecostais e, principalmente entre os neopentecostais. Estes últimos têm demonstrado em seu discurso quase que como uma obrigatoriedade de Deus em atendê-los. Mas vejamos a seguir o que é a soberania de Deus.
Podemos definir a soberania de Deus como seu direito de, no cumprimento de seus propósitos, fazer ou não o que bem Ele quiser, da forma que lhe aprouver, no lugar e tempo onde achar melhor, com quem ou para quem ele decidir. Champlin (1991-E, p. 313) define a soberania de Deus como o “total domínio do Senhor sobre toda a sua vasta criação. Como soberano que é, Deus exerce de modo absoluto a sua vontade, sem ter de prestar contas a qualquer vontade finita.
O apóstolo Paulo se viu diante desta soberania em sua dramática conversão e durante a sua carreira cristã. Embora fosse um importante instrumento nas mãos de Deus no processo de implantação da igreja entre os gentios e no desenvolvimento das doutrinas fundamentais do Evangelho, lidou com “um espinho na carne” (2 Co 12.7), que considerou como “um mensageiro de Satanás” para feri-lo e atormentá-lo. Não se pode afirmar ao certo o que era esse mal que o afligia. A maioria dos estudiosos da Bíblia fala em enfermidade e teólogos mais progressistas acreditam tratar-se de um pecado do qual ele não conseguia se libertar. O fato é que, embora tenha implorado em três ocasiões diferentes ao Senhor para que tirasse dele o tal “espinho” (v. 8), Deus não quis fazê-lo.
Timóteo, seu discípulo, tinha frequentes enfermidades, sendo uma delas no estômago (1 Tm 5.23), pelas quais certamente o próprio Timóteo, Paulo e outros irmãos já tinham orado, porem Deus não curou.
Até mesmo a misericórdia de Deus é distribuída por ele segundo a sua soberania. Em Êxodo 33.19 e em Romanos 9.15 Deus diz que se compadece e tem misericórdia de quem ele quiser. Em 9.18 Paulo diz que Deus “compadece-se de quem quer e endurece a quem quer”.
Assim, ao buscarmos o milagre que achamos que precisamos, devemos nos submeter a Deus e à sua soberania, que decidirá se precisamos ou não.
8.2.2. A fé necessária para o milagre
Tendo passado pelo crivo da soberania de Deus, nosso milagre dependerá da nossa fé. O autor de Hebreus (11.6) diz que sem fé é impossível agradar a Deus, sendo necessário que aquele que dele se aproxime, creia em duas coisas: (1) que ele existe e que (2) “recompensará aqueles que sinceramente o procuram”. (Versão Nova Bíblia Viva).
Em Mateus 13.58 lemos que Jesus “não fez ali [em sua terra] muitos milagres, por causa da incredulidade deles.” Os milagres não ocorreram não porque a falta de fé das pessoas trouxesse alguma dificuldade a Jesus em operá-los. É que seus milagres tinham como propósito anunciar-lhes o Reino de Deus e não valia a pena falar desse assunto a pessoas sem fé. “A operação de milagres visa o aprofundamento da compreensão do homem sobre Deus. Essa é a maneira de Deus falar dramaticamente para aqueles que têm ouvidos para ouvir.” (Junta Editorial Cristã, p. 1042).
Destarte, ao buscarmos o milagre do qual necessitamos, devemos fazê-lo com a consciência de que o mais importante é salvação da alma, tendo fé para esta salvação e a fé que podemos alcançar o milagre.   
8.2.3. O milagre em nossas mãos
Por último, o milagre está em nossas mãos. Em outras palavras, é nos dado por Deus operar milagres através das nossas mãos.
Em Êxodo 4.21 lemos que         “Disse o SENHOR a Moisés: Quando voltares ao Egito, vê que faças diante de Faraó todos os milagres que te hei posto na mão [...]”. (Grifo acrescentado).
Na primeira multiplicação dos pães e peixes (Mateus 14.13-20) Jesus partiu os cinco pães que tinham, deu-os aos seus discípulos e estes os distribuíram entre as pessoas, de sorte que quanto mais partiam os pães, mais eles se multiplicavam. Não foi Jesus quem multiplicou propriamente dito os pães. O milagre do Mestre esteve em possibilitar aos discípulos que multiplicassem o alimento de forma também milagrosa.
O milagre está em nossas mãos da mesma forma que esteve nas mãos dos discípulos. Porém, isso tem outras implicações. Como vimos anteriormente, Jesus nos disse que os sinais milagrosos haveriam de seguir os que cressem. No entanto, os sinais elencados por ele estão todos ligados ao fazer a obra de Deus. Por que haveríamos de expulsar demônios, falar novas línguas, pegar em serpentes, beber coisas mortíferas sem sofrer dano e curar enfermos sobre imposição de mãos, senão no trabalho do mestre? Os discípulos que multiplicaram os pães junto com Jesus não o fizeram para eles, senão para a multidão que os seguia.
Não há nada de errado em buscarmos milagres que nos favoreçam – aliás, não devemos abrir mão deles – no entanto, é mais legítimo buscarmos milagres em favor de nós mesmos quando estamos sendo canal de milagres aos outros.
9. Os milagres e seus diversos propósitos
Deus não faz nada sem um propósito e esse mesmo princípio se aplica aos milagres. Segundo Colin Brown, citado por Assis (p. 10), “Orígenes dizia que sem milagres e maravilhas os apóstolos não teriam persuadido aqueles que escutaram novas doutrinas e novos ensinamentos para largar sua religião e acertar [seguir] os apóstolos”. Ainda segundo Brown, para Gregório de Nissa os milagres foram necessários para convencer os homens da deidade de Jesus.
Teologicamente há outros propósitos para os milagres, entre eles o de abrir portas para o evangelismo, a compaixão de Deus em favor dos que sofrem com enfermidades, a glorificação da pessoa de Deus e, no dizer de Assis (p. 26) autenticar a revelação e credenciar Jesus como seu emissário e autor.
9.1. Os diversos propósitos do milagre nas referências bíblicas onde a palavra aparece
Algumas referências bíblicas onde aparece a palavra milagre, também nos dão um indicativo desses propósitos:
Demonstrar o poder de Deus: “e o SENHOR nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com milagres”. (Deuteronômio 26.8)
Aplicar o juízo de Deus: “Fizeste sinais e milagres contra Faraó e seus servos e contra todo o povo da sua terra, porque soubeste que os trataram com soberba; e, assim, adquiriste renome, como hoje se vê.” (Neemias 9.10)
Atribuir louvor a Deus: “E, quando se aproximava da descida do monte das Oliveiras, toda a multidão dos discípulos passou, jubilosa, a louvar a Deus em alta voz, por todos os milagres que tinham visto.”  (Lucas 19.37)
Demonstrar a aprovação do ministério de Jesus: “Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis.” (Atos 2.22)
Dar testemunho do Evangelho de Salvação de Cristo: “O próprio Simão abraçou a fé; e, tendo sido batizado, acompanhava a Filipe de perto, observando extasiado os sinais e grandes milagres praticados.” (Atos 8.13)
“E Deus, pelas mãos de Paulo, fazia milagres extraordinários”. (Atos 19.11)
“Como escaparemos, se negligenciarmos tão grande salvação? Esta salvação, primeiramente anunciada pelo Senhor, foi-nos confirmada pelos que a ouviram. Deus também deu testemunho dela por meio de sinais, maravilhas, diversos milagres e dons do Espírito Santo distribuídos de acordo com a sua vontade.” (Hebreus 2.3-4)
Demonstrar a predominância da graça e da fé sobre as obras: “Aquele, pois, que vos concede o Espírito e que opera milagres entre vós, porventura, o faz pelas obras da lei ou pela pregação da fé?” (Gálatas 3.5)
10. Semeionologia prática: a doutrina bíblica do milagre e suas implicações na vida do crente
A capacidade que Deus dá aos seus de operar milagres no poder do Espírito Santo e no nome de Jesus, tem algumas implicações na vida do cristão. Da mesma forma que fizemos no tópico imediatamente anterior, selecionamos aqui algumas referências onde o termo milagre aparece, visando encontrar os indicativos de uma semeionologia prática.
Deus põe milagres nas mãos dos seus: “Disse o SENHOR a Moisés: Quando voltares ao Egito, vê que faças diante de Faraó todos os milagres que te hei posto na mão; mas eu lhe endurecerei o coração, para que não deixe ir o povo”. (Êxodo 4.21). (Grifo acrescentado).
Há situações onde o povo de Deus é desafiado a operar milagres para vencer as forças do mal: “Quando Faraó vos disser: Fazei milagres que vos acreditem, dirás a Arão: Toma o teu bordão e lança-o diante de Faraó; e o bordão se tornará em serpente”. (Êxodo 7.9)
Operação de milagres não significa necessariamente comunhão com Deus, santidade ou salvação: “Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!” (Mateus 7.22-23)
Ser alcançado por milagres não significa necessariamente arrependimento: “Passou, então, Jesus a increpar as cidades nas quais ele operara numerosos milagres, pelo fato de não se terem arrependido: Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidom se tivessem operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se teriam arrependido com pano de saco e cinza”. (Mateus 11.20-21)
A incredulidade de expectadores – da plateia – pode inibir a operação de milagres: “E não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles.” (Mateus 13.58).
O mal também opera milagres: Mateus 24.23-24: “Se, pois, alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo aí! não acrediteis; porque hão de surgir falsos cristos e falsos profetas, e farão grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os escolhidos.” (Mateus 24.23-24). 
Conclusão
As deduções às quais chegamos após as reflexões, análises e hipóteses que incluem essa pesquisa, nos abrem possibilidades ímpares. Uma delas é reconhecer o quanto a vida cristã está atrelada aos milagres. Ser discípulo de Jesus é percorrer uma via de milagres que nos liga de um ponto de partida a um destino, ambos – partida e destino – igualmente milagrosos. Mesmo que concordássemos com Lutero de que milagres acontecem somente numa dimensão espiritual, apenas na alma do crente quando de sua conversão, estaríamos reféns de uma vida de milagres, pois constantemente necessitamos ser escondidos no “Castelo forte”, como diz o reformador alemão, entre as muralhas da sua fortaleza, guardados do “vil acusador” pelo Senhor que “triunfa nas batalhas”.
Reconhecemos que estamos sempre rodeados de milagre, mesmo sabendo que, paradoxalmente, nem tudo o que recebemos de Deus é milagre. Há favores que recebemos dele que não estão na categoria dos milagres. As bênçãos não são todas milagrosas; na sua maioria elas são dádivas naturais que não conseguiríamos sem a ajuda Pai. As suas misericórdias não são todas sobrenaturais ou milagrosas; elas representam a tolerância de Deus em não nos punir no nível que merecemos. As graças alcançadas não são todas resultado de milagre; elas são favores que não merecemos ou que podemos pagar.
Por fim, reconhecemos que somente caminhando pela via do milagre é que igreja se fortalece para confrontar os valores do relativismo e para oferecer seus valores como “sal e luz” na cultura do sec 21. Só na via dos milagres que discípulo e discípula constroem sua identidade de gênero conforme criados por Deus, homem e mulher, “macho e fêmea” que constituem famílias que ampliam as fronteiras da igreja através da evangelização, levando pessoas ao milagre da salvação.
REFERÊNCIAS
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[1] Nelson Gervoni é teólogo (Instituto Teológico Batista de Bauru), pedagogo (ULBRA), especialista em Relações Interpessoais na Escola (UNIFRAN) e psicanalista (Sociedade Campinense de Psicanálise). É professor universitário e professor na Rede Pública Estadual. Congrega e auxilia como pastor na Comunidade Cristã Família da Fé de Campinas/SP.
[2] Informamos no texto quando a versão utilizada não for a ARA.
[3] Neologismo = Palavra nova, ou acepção nova de uma palavra já existente na língua ou idioma.
[4] Os grifos deste tópico foram acrescentados pelo autor.
[5] A Bíblia diz que “[...] os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com ele [Cristo] nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares [...]” 1 Tessalonicenses 4.16b-17a.
[6] Propositalmente deixamos de citar aqui as posições da teologia liberal e do racionalismo sobre o assunto, por não ser esse o objetivo do trabalho. 

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