Semeionologia: doutrina bíblica do milagre
Nelson Gervoni[1]
Introdução
O
|
presente
artigo tem como objetivo subsidiar a aula que trata do assunto Milagres, no curso de inverno “A Igreja
e os valores do relativismo”, oferecido pela Escola Bíblica Dominical da
Comunidade Cristã Família da Fé, em Campinas/SP. Conforme proposto pelos organizadores
do curso, o tema da aula parte da dupla problematização: “Deus ainda faz milagres? e Onde está o meu milagre?”, questões que tentaremos
responder ao longo de nossa pesquisa, relatada neste trabalho.
A fim de alcançarmos esse objetivo organizamos nosso
estudo em tópicos que tratam dos seguintes assuntos: Conceito de milagre; Exemplos
na Bíblia de milagres conforme a definição proposta; Os milagres e suas respectivas alterações de leis; A extensão da lista de milagres na Bíblia; Leis naturais “revogadas” por leis
sobrenaturais; O milagre como base do
Plano de Salvação; O milagre e sua
relação com os dons manifestacionais;
Os milagres e seus propósitos; e
Semeionologia prática: a doutrina bíblica do milagre e suas implicações na vida
do crente.
Para desenvolver nosso estudo nos valemos de uma
pesquisa bibliográfica, através da qual foram consultados, além da Bíblia
Sagrada (Versão ARA - Almeida Revista e Atualizada[2]),
artigos e textos conforme indicados nas referências bibliográficas.
Vale dizer que esta pesquisa não tem o propósito
de esgotar um assunto tão vasto como este, visando, além de seu objetivo
específico (subsidiar a exposição do tema no curso de inverno), oferecer uma
pequena contribuição a estudantes da Bíblia e da Teologia, num tema onde ainda
há muito a ser garimpado.
1.
Conceito de milagre (o que é milagre?)
Antes de iniciar nosso estudo é necessário
compreender o conceito de milagre. O que é milagre, termo tão usado no meio
evangélico, em especial nos meios pentecostal e neopentecostal?
Wilkinson (2004, p. 20) define bem objetivamente o
milagre como “uma intervenção divina que
provoca um evento que normalmente não ocorreria”.
Para Champlin (1991, p. 266) “os eventos miraculosos são aqueles que ultrapassam daquilo que se
poderia esperar de circunstâncias naturais e usuais”.
Aprofundando-se um pouco mais no significado de
milagres, Campos, citado por Assis (p. 22), refere-se a milagres como
[...] atos sobrenaturais de Deus
realizados na história do mundo e percebidos externamente por testemunhas, atos
esses que produziram efeitos sobrenaturais na vida das pessoas de tal forma que
reconhecidamente somente Deus poderia realizá-los. [...] É o poder de Deus
manifestado de forma singular, fora dos padrões naturais, que causa espanto e
admiração nos homens, para consecução de seus decretos.
A “admiração”
a que se refere Campos está associada à origem do termo milagre. Quanto a isso
Champlin (p. 265) explica que “A palavra ‘milagre’
vem do latim, mirari, ‘admirar-se’. Mirus é um adjetivo latino que significa ‘maravilhoso’,
‘admirável’. Miraculum é alguma ‘maravilha’,
um ‘prodígio’, um ‘milagre’.
Santos (2003), faz uma definição de milagre como
sendo
[...] um prodígio religioso
(aspecto psicológico), uma obra de poder (aspecto da causalidade), um sinal
dirigido por Deus (aspecto da intencionalidade). Especialmente nos Evangelhos,
é considerado como sinal, isto é, como “palavra plástica” de Deus que interpela
o homem e o ajuda a proferir um ato de fé na mensagem transmitida por Cristo.
Ou seja, os milagres são sinais divinos que não podem dar-se separados ou
isolados da Revelação de Deus à qual pertencem e que expressam.
As definições acima tratam do assunto do ponto de
vista teológico, mas a filosofia também se ocupa do tema. No caso de Japiassú e
Marcondes (2006, p.188) a definição é muito parecida com as que apresentam a
teologia. Para esses autores, milagre é um “Fato extraordinário, inesperado
e inexplicável pelas leis naturais. Fenômeno excepcional que ocorre por força
da ação direta de Deus e, por esse motivo, possui um significado religioso
especial. ‘As coisas feitas por Deus, fora das causas por nós conhecidas, são
chamadas de Milagres’ (Tomás de Aquino).”
As conceituações apresentadas dão conta de esclarecer
o que é milagre, no entanto, deixam uma área considerável a ser explorada no
campo da definição. Diante disso, propomos conceituar
milagre de uma forma mais complexa,
visando maior aprofundamento no tema. Assim, aplicaremos neste estudo o
seguinte significado ao termo:
Evento executado
por Deus através de Sua própria Pessoa, ou através de humanos ou seres
angelicais, canais, ferramentas ou instrumentos que lhe aprazem, visando, com
objetivo específico, alterar, modificar, intervir ou interferir em leis: (1) naturais
(nos campos físico, químico e biológico); (2) cognitivas; (3) afetivas (nos
campos emocional e moral); e (4) espirituais. No entanto, não se pode limitar o
termo apenas a estes quatro grupos de leis, haja vista que se tem observado intervenções
milagrosas em leis (5) sociais (nos campos sociológico, político e econômico). Desta
forma, milagres são ações de Deus que envolvem o homem, a natureza onde ele
vive e a sociedade por ele formada.
A complexidade e extensão deste conceito carecem
de melhor compreensão, assim, vejamos em detalhes essa definição.
O milagre é um “Evento” por ser um acontecimento ou um fato limitado no
tempo – se dá num determinado momento e lugar, num aqui e agora. É “executado por Deus”, pois mesmo
quando não se dá “através de Sua
própria pessoa” é dEle a ordem para a sua execução. É bem verdade que
forças do mal operam milagres, como a própria Bíblia nos diz (Mateus 24.23-24 e
muitos outros textos), mas aqui estamos falando do milagre genuíno, que é o milagre
divino. “Ou através de humanos
ou seres angelicais”, pois Deus usa
para isso tanto pessoas como anjos. O milagre pode ser executado ainda através
de “canais, ferramentas ou
instrumentos”, pois Deus não depende de anjos ou pessoas para operar um
milagre, podendo fazê-lo através de situação e/ou circunstância quaisquer, ou
mesmo diretamente a partir de Sua Pessoa. Esses meios, pessoas ou seres são
escolhidos de várias formas “que lhe
aprazem”, pois o faz segundo a Sua vontade e prazer. O milagre tem
sempre um “objetivo específico”,
pois o Senhor nada faz ao acaso ou sem motivo. Trata-se de um evento que se
propõe a “alterar, modificar, intervir
ou interferir” em alguma coisa, do contrário não ocorreria ou não teria
sentido de ser. A coisa modificada o é através de alteração de “leis” que já estão estabelecidas,
pois as coisas “naturais” são
regidas por leis da física, da química ou da biologia. Os milagres interferem
ou alteram também leis nas esferas “cognitiva”,
visto que alcança o intelecto, e “afetiva”,
visto que envolve e altera as emoções e a moralidade do ser humano. Também se
dão como interferência em “leis
sociais”, com resultados nos “campos
sociológico, econômico e político”, pois Deus é Senhor e controlador da
história de povos e nações.
1.1
Semeionologia: estudo sobre os milagres
Não há na teologia sistemática um nome que defina
a doutrina dos milagres. Por exemplo, a doutrina sobre o homem é chamada na
teologia de antropologia, do grego antropos = homem e logia = estudo; a doutrina
sobre as últimas coisas, eventos apocalípticos, volta de Cristo, etc. é chamada
de escatologia, do grego éschatos = último e logia = estudo. Os termos que
designam a teologia aparecem em grego, principalmente por ser esta a língua na
qual o Novo Testamento foi escrito.
Assim, propomos no presente trabalho o
preenchimento desta lacuna, dando um nome à doutrina
do milagre, classificando-a na teologia sistemática com o neologismo[3] “semeionlogia” ou “semeionologia”. O termo é derivado do grego sêmeion (shmei~on),
que significa sinais. Lembrando que o termo milagre
deriva de miraculum, tradução latina
do grego sêmeion.
2.
Exemplos na Bíblia de milagres conforme a definição proposta
Vejamos, então, alguns exemplos e referências
bíblicas das formas de milagres apresentadas anteriormente.
Primeiramente analisaremos os milagres e suas execuções: (1) Milagre
executado pelo próprio Deus; (2) Milagre executado por servos
de Deus; (3) Milagre executado por anjos de
Deus; e (4) Milagre executado através de
outros meios. (Ver quadro 01 na p. 16).
Em seguida propomos analisar os milagres e suas
respectivas alterações de leis: (1) Alteração de lei natural no
campo físico; (2) Alteração de lei natural no
campo químico; (3) Alteração de lei natural no
campo biológico (Ver quadro 02 na p. 16); (4) Alteração de lei no campo
cognitivo; (5) Alteração de lei no campo afetivo
(emocional e moral); (6) Alteração de lei no campo
espiritual (Ver quadro 03 na p. 17); (7) Alteração de lei no campo
social resultando em alterações sociológica, econômica e política (Ver quadro
04 na p. 17).
Para cada tipo de análise (execuções e alterações de
leis) apresentamos
um exemplo com sua respectiva referência bíblica. Como o objetivo aqui é
indicar a possibilidade de cada uma das formas relacionadas, limitamo-nos a um,
dois ou no máximo três exemplos bíblicos para cada forma milagrosa. Em apenas
uma análise – a que trata de milagre no campo social resultando em alterações
sociológica, econômica e política – usaremos, além do exemplo bíblico, um fato
da história contemporânea, a saber, o ressurgimento de Israel como Estado
Político em 1948.
2.1. Os milagres e suas execuções
2.1.1. Milagre executado
diretamente pelo próprio Deus
A Criação do céu e da terra e de tudo o que neles há – incluindo o ser
humano – deve não somente ser considerada como milagre, mas cabe a ela o status
de “milagre fundante”, por se tratar da ação milagrosa que funda a ação de Deus
em favor do homem em toda a história. Talvez a classificação da Criação como
milagre nos coloque diante da seguinte questão: que leis da natureza Deus
alteraria, uma vez que a natureza ainda não estava formada? A resposta está no ex nihilo, termo latino que significa “a
partir do nada”. Em outras palavras, a Criação é um milagre, pois se deu a
partir do nada. Assis (p. 20) inclui a Criação na categoria de milagres que “abarca aqueles eventos em que o efeito não
teve causa secundária, ou seja, a causa de todos os efeitos do evento é Deus”,
que agiu nela diretamente. O texto bíblico que fala da Criação encontra-se em
Gênesis, cap. 1.
2.1.2. Milagre executado por servos de Deus
O cajado de Moisés se transforma em serpente quando jogado ao chão e se
torna em cajado novamente ao ser pego por ele. A narrativa bíblica (Êxodo
4.2-4) diz que, falando a Moisés “[...] o
Senhor disse-lhe: Que é isso na tua mão? E ele [Moisés] disse: Uma vara. E ele [o Senhor] disse: Lança-a na terra. Ele a lançou na terra, e tornou-se em cobra; e
Moisés fugia dela. Então, disse o Senhor a Moisés: Estende a mão e pega-lhe
pela cauda (E estendeu a mão e pegou-lhe pela cauda, e tornou-se em vara na sua
mão)”. Esse
milagre se repete mais adiante, quando Moisés e seu irmão Arão, cuja vara é
usada desta vez, interpelam a Faraó (7.10-12). O rei do Egito então mandou
chamar seus “sábios e encantadores”,
“magos do Egito” que imitaram o feito
de Moisés, com suas mágicas. Aí ocorre um novo milagre, pois “a vara de Arão tragou a vara deles”,
numa demonstração de que nenhuma mágica se compara a um milagre operado por
Deus.
2.1.3. Milagre executado
através de anjos de Deus
A narrativa bíblica (Gênesis 19.1-11) conta que a situação
moral de Sodoma nos tempos de Abraão era tão deplorável que Deus decide
destruir a cidade. Como resultado da intercessão de Abraão em favor de Ló, Deus
envia à cidade dois anjos com a missão de destruí-la, porém, salvando a família
do sobrinho do patriarca. Por insistência de Ló, os dois homens (era esta a
aparência dos anjos) entraram em sua casa para lavar os pés, fazer uma refeição
e ali passar a noite. Ocorre que os homens da cidade, jovens e velhos, queriam
que Ló pusesse para fora seus dois visitantes, pois queriam abusar deles
sexualmente. Como Ló insistia em persuadi-los a mudar de ideia, inclusive
oferecendo-lhes suas duas filhas virgens para serem abusadas em lugar dos
visitantes, aqueles homens decidiram invadir sua casa. Os dois anjos então
fizeram Ló entrar com eles na casa, fecharam a porta e feriram de cegueira àqueles
homens maus, de sorte que eles não conseguiram encontrar a porta.
A ação dos dois homens foi milagrosa, pois feriram
seus algozes sem tocar neles, pois estavam para o lado de dentro com Ló e sua
família.
2.1.4. Milagre executado
através de outros meios
Segundo a narrativa encontrada em Números 22, o
enigmático profeta Balaão recebe em Petor, sua cidade, uma comitiva enviada por
Balaque, rei de Moabe, com uma proposta financeira para amaldiçoar os filhos de
Israel. A causa do pedido era o avanço militar de Israel. “Eles já haviam conquistado Jericó e certas regiões dos moabitas, e os
midianitas poderiam ser as próximas vítimas”, comenta Champlin (1991, p.
433). Ocorre que Deus falou com Balaão, orientando-o a não atender ao pedido de
Balaque, pois o povo de Israel era bendito por Ele. A comitiva retorna a Moabe
e transmite ao rei a negativa do profeta. Entretanto, Balaque insiste, enviando
a Balaão uma nova comitiva, desta vez com homens mais honrados que os primeiros
e com uma proposta financeira mais vantajosa. O profeta acaba cedendo ao
convite e viaja de volta com a comitiva, rumo a Moabe. Irado, Deus intercepta a
comitiva, através do Anjo do Senhor. A jumenta na qual o profeta montava viu o
Anjo e, espremendo-se numa parede, apertou o pé de Balaão que passou a
espancá-la. A Bíblia diz que então “o
Senhor abriu a boca da jumenta”, que passou a falar com seu dono. Balaão
passou a discutir com o animal, até que o Senhor abriu seus olhos para que
também visse o Anjo do Senhor, entendendo o desígnio de Deus para aquela
situação.
Como pode um animal emitir sons diferentes
daqueles para os quais sua natureza foi desenvolvida, passando a falar, se não
por um milagre?
3. Os milagres e suas respectivas alterações de leis
O tópico que trata dos milagres e como eles alteram leis existentes pode
ser desmembrado da seguinte forma: (1) alterações nas leis que regem as Ciências da Natureza (Física, Química e
Biologia); (2) alterações
nas leis em áreas abstratas da vida humana (Cognição, Afetividade e Espiritualidade);
e (3) alterações em leis sociais, a saber, as que regem as teorias sociológicas,
econômicas e políticas.
3.1. Alterações de leis que regem as Ciências da Natureza
3.1.1. Alteração de lei
natural no campo físico
Um exemplo de alteração de uma lei natural da
física é visto no milagre operado pelo profeta Eliseu (2 Reis 6.1-7), fazendo
um machado sem cabo boiar nas águas do rio Jordão. O texto narra que o profeta
e seus discípulos estavam à margem do rio cortando troncos para construírem um
local de reunião maior para a casa de profetas. Em dado momento, enquanto um
deles cortava uma árvore, o ferro do machado escapou e afundou na água. O
discípulo que usava o machado se desesperou, pois, conforme disse ao profeta, a
ferramenta era emprestada. Eliseu perguntou-lhe onde o machado havia caído e ao
ser informado do local, cortou uma vara e jogou na água, no lugar onde o
machado havia afundado, fazendo-o boiar.
Esta foi uma aula prática de milagre, pois um ferro
de machado não pode, pela lei da física, boiar. Mesmo um machado com cabo
afunda se jogado num rio.
3.1.2. Alteração de lei natural no campo químico
Usemos como exemplo de alteração de lei natural no
campo químico o clássico milagre operado por Jesus e que inaugura as práticas de
sinais e prodígios de seu ministério. Trata-se da água transformada em vinho
num casamento em Caná da Galileia (João 2.1-11). Não se sabe o motivo, mas a
realidade é que durante a festa o vinho se acabou. Essa falta chamou a atenção
de Maria, mãe de Jesus, que lhe comunicou o fato. Após um diálogo com ela
Então Jesus disse aos empregados [da casa]:
“Encham as talhas de água”. Quando isso foi feito, ele disse: “Tirem um pouco e
levem ao mestre de cerimônias”. [...] Quando o mestre de cerimônias
experimentou a água, que já tinha sido transformada em vinho, não sabendo de
onde vinha (embora os empregados soubessem), chamou o noivo e disse: “O senhor
é diferente de todos os outros! Geralmente o dono da festa serve primeiro o
vinho melhor, e depois, quando todo mundo está satisfeito e não se importa mais,
o vinho inferior é servido. Mas o senhor guardou o melhor para o fim!” (Versão
da Nova Bíblia Viva, vs. 7-10).
3.1.3. Alteração de lei
natural no campo biológico
A ressurreição de Lázaro (João 11.1-44) e as
demais ressurreições operadas por Jesus – o filho da viúva de Naim (Lc 7.11-17)
e a filha de um oficial (Mt 9.18-19, 23-26; Mc 5.21-24, 35-42; Lc
8.40-42,49-56) – podem ser categorizadas como milagres no campo biológico e
também físico. É um tipo de evento que altera leis da biologia, pois restaura
as células orgânicas que foram decompostas pela falta de circulação sanguínea.
É ainda um evento que provoca alterações em leis da física, conforme explica Assis
(p. 22) ao comentar a ressurreição de Lázaro:
Assim como todos os demais corpos
de pessoas falecidas, havia forças químicas que operavam dissolução em seu
corpo, quando este estava inerte no túmulo. Certamente, deixado em seu estado
natural, o corpo de Lázaro iria apodrecer e se decompor. No entanto, houve a
cessação e a modificação de tais forças químicas no corpo inerte de Lázaro, no
momento em que Jesus ordenou que o mesmo saísse do túmulo.
3.2. Alterações de leis
em áreas abstratas da vida humana
A exemplo do que ocorre nos campos concretos
(Física, Química e Biologia), os campos abstratos da vida humana (intelectual,
afetivo e espiritual) também têm suas leis, todas elas com causas e efeitos. A
diferença está apenas no fato de que as leis do campo abstrato não podem se
comprovar concretamente, apenas por experimentos e observações. Tais leis são
demonstradas em teorias desenvolvidas e comprovadas por autores em suas
respectivas áreas de estudo. O fato dessas leis não se comprovarem senão
abstratamente, lhes asseguram certa identificação com a teologia e com a
filosofia, cujos materiais de estudo também não são concretos. Em outras
palavras, os milagres em campos abstratos da vida humana têm o mesmo valor que
o atribuído aos milagres materializados, como curas, por exemplo.
Campo
cognitivo -
Por
exemplo, Jean Piaget (1896-1980) descobre a existência de leis que operam no
campo cognitivo ao estudar o
desenvolvimento da inteligência
na criança, elaborando sua psicologia genética, organizada em quatro estágios: (1)
sensório motor (de 0 a 2 anos); (2) pré-operacional (de 2 a 7
anos); (3) operacional concreto (7 a 12
anos); e (4) operacional formal (a partir
de 12 anos).
A teoria piagetiana vai muito além dos quatro
estágios do desenvolvimento intelectual na criança. “Para explicar como e por que ocorre o desenvolvimento cognitivo, Piaget
usa quatro conceitos básicos: 1. esquema; 2. Assimilação; 3. acomodação; e 4.
equilibração”. (Barros, 1996, p. 44).
Obviamente há outras formulações teóricas sobre o
desenvolvimento cognitivo com suas respectivas leis e seria impossível tratar
de todas elas aqui. As teorias behaviorista de Skinner, humanista de Rogers e histórico-cultural
de Vygotsky são apenas algumas delas.
Campo
afetivo -
A afetividade envolve duas áreas fundamentais do desenvolvimento humano:
emocional e moral. O termo afetividade
não pode ser confundido com afeto ou afetuosidade. “A afetividade é a forma como colocamos energia nas emoções. De acordo
com a maneira como fazemos isso, somos impulsionados ou não a realizarmos esta
ou aquela tarefa, deste ou daquele jeito”. (Gervoni, 2013). Esse campo
também tem suas leis próprias.
O pediatra e psicanalista Winnicott (1983), entre
outros, desenvolveu estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional,
formulando importantes teorias nesta área. Entre as suas concepções se destacam
a relação de maternagem, seu consequente vínculo entre a mãe e o bebê, como
essas coisas interferem no desenvolvimento psicoafetivo da criança e suas
consequências na idade juvenil e adulta.
Quanto à moralidade, Piaget (1994) estudou o desenvolvimento
do juízo moral na criança e as relações desse desenvolvimento com as
regras, com a coação imposta pelo adulto, com a mentira, com a justiça e com as
autoridades, etc.
Campo
espiritual -
Repleto de leis com causas e efeitos, a área espiritual é considerada pela
maioria dos teólogos como de maior importância entre as áreas abstratas. Talvez
essa concepção tenha se desenvolvido a partir da ideia de um ser humano formado
por “compartimentos”, se não incomunicáveis, com pouca ligação entre si. A
doutrina antropológica tricotomista – o homem formado por corpo, alma e
espírito – parece ter sustentado essa imaginação ao longo dos tempos. Mesmo
pensando tricotomistamente, podemos compreender a íntima e profunda relação
entre o corpo, a alma e o espírito, concluindo que o desenvolvimento de um
depende do outro. O ser humano deve ser visto holisticamente, sem que isso
signifique uma aproximação do movimento da Nova Era, do esoterismo ou algo que
o valha.
3.2.1. O milagre da
conversão e o seu caráter universal
Antes de apresentarmos exemplos bíblicos de milagres nos campos cognitivo, afetivo e espiritual, vamos
falar do milagre da conversão do ser humano como um evento de caráter
universal. Essa classificação tem duas razões. A primeira delas é que o evento
da salvação com suas dimensões – veremos essas dimensões adiante – passa
necessária e obrigatoriamente por esse milagre. Ou seja, ninguém pode ser
alcançado pela salvação sem antes passar pela conversão. Em segundo lugar esse
milagre é universal por envolver alterações em leis nos três campos: cognitivo, afetivo e espiritual. Se
não, vejamos.
Campo cognitivo - A conversão se dá através da transformação intelectual, pois o homem
passa não somente a pensar, mas a aprender de forma diferente,
pelo Espírito de Deus, através da Sua Palavra. “De sorte que a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus”.
(Romanos 10.17). Ao se converter, o ser humano passa por uma “metanoia”
(transformação da mente) que o tira de uma “paranoia” (confusão da mente).
Campo afetivo - Mas a conversão se processa ainda pela transformação afetiva,
modificando setores emocionais e morais da nossa vida. Quando uma pessoa se
converte experimenta milagres – alterações de leis estabelecidas – em suas
emoções e em seu juízo moral. As emoções e a moralidade da pessoa convertida
são diferentes das que possuía antes da conversão.
Campo espiritual - Por último, a conversão muda o espírito do homem, que passa agora a ser
controlado pelo Espírito de Deus, possibilitando que o fruto do Espírito
predomine sobre as obras da carne. Em sua carta aos Gálatas (5.16-17), o
apóstolo Paulo diz:
Eu os
aconselho a obedecerem somente as instruções do Espírito Santo. Ele lhes dirá
aonde ir e o que fazer, e assim vocês não estarão sempre satisfazendo os
desejos da natureza pecaminosa. Porque nós por natureza gostamos de fazer as
coisas ruins que são justamente o oposto das coisas que o Espírito nos manda
fazer; e as coisas boas que desejamos fazer quando o Espírito nos domina são
justamente o oposto dos nossos desejos naturais. (Versão Nova Bíblia
Viva).
Em João 16.8 Jesus fala do papel do Espírito Santo com o tríplice objetivo
de convencer o mundo do (1) pecado, da (2) justiça
e do (3) juízo. Esse ato divino altera leis na área cognitivo-intelectual, pois
o convencimento se dá na mente; altera leis na área psicoafetiva, pois transforma
beneficamente as emoções e modifica nossa compreensão moral acerca do “juízo”
de Deus; e altera leis na área espiritual, como veremos adiante (Ver tópico 3.2.4.
Alteração de lei no campo espiritual).
3.2.2. Alteração de lei
no campo cognitivo
As leis que regem o intelecto humano são passíveis de alterações
milagrosas constantes. Além do ato de o Espírito Santo convencer o homem do
pecado, da justiça e do juízo, que como já vimos é um milagre que se dá também no
intelecto, a sabedoria de Salomão pode ser considerada como resultado de uma
intervenção divina no seu comportamento intelectual. Em 2 Crônicas 1.10 o filho
e sucessor de Davi no reino fala a Deus da seguinte maneira: “Peço que o Senhor me dê sabedoria e
conhecimento para governar esse povo. Pois quem pode, sozinho, dirigir uma
nação tão grande como esta?” (Versão Nova Bíblia Viva). No verso 12 lemos
que Deus concede sabedoria e conhecimento a Salomão. Obviamente o rei já tinha
sabedoria e conhecimento, mas a partir de então tais expertises lhe foram multiplicadas
de forma sobrenatural, através de alterações de leis cognitivas.
Outro exemplo da ação milagrosa de Deus alterando leis no intelecto de
uma pessoa é o do profeta Daniel (cap.1), que por haver decidido “[...] no seu coração não se tornar impuro
consumindo as iguarias do rei [...]” Nabucodonosor, foi abençoado “[...] com especial sabedoria e inteligência
em toda cultura e ciência [...]”, além da capacidade de “interpretar sonhos e visões de todos os
tipos”. (Versão King James Atualizada).
3.2.3. Alteração de lei
no campo afetivo
A nossa afetividade – tanto no aspecto emocional quanto no aspecto moral
– também é alvo dos milagres de Deus. A Bíblia traz diversos exemplos de ações
desta natureza. Só para relembrar, ao ser convencido pelo Espírito Santo dos
seus pecados, da justiça e do juízo o ser humano passa por um processo
milagroso que altera nele leis emocionais e morais.
Vejamos apenas um exemplo bíblico em João 4.4-26, que fala da mulher
samaritana abordada por Jesus. A mulher já estava no sexto relacionamento
conjugal e a fala de Jesus no vs. 18 parece demonstrar que seu atual homem não
era totalmente compromissado com ela. No contexto da época isso era um
indicativo de desajuste moral e tanto naquele tempo quanto hoje, aponta para
desajustes emocionais que impediam aquela mulher de se relacionar por muito
tempo com o mesmo homem, levando-a a constantes trocas de marido. Na sequência
o texto mostra que a samaritana entrou num processo de alteração das leis
emocionais e morais que direcionavam sua vida, pois ela se converteu e pregou
Jesus a outras pessoas.
O Salmo 147.3 também fala de transformação afetiva operada por Deus, ao
dizer que “Só ele devolve a alegria aos
tristes de coração e cura as suas feridas” (Versão Nova Bíblia Viva)
emocionais.
3.2.4. Alteração de lei
no campo espiritual
A fonte das leis que agem no campo espiritual é a
Bíblia. Para citar apenas um exemplo, o apóstolo Paulo (Romanos 7) se refere a
uma lei que se desmembra três leis que agem no campo espiritual, reverberando
nos campos cognitivo, afetivo e físico. No versículo 21 ele introduz o assunto
sobre esta lei, dizendo: “Acho, então,
esta lei em mim: que quando quero fazer o bem, o mal está comigo”.
Como vemos, trata-se de uma lei espiritual que nos impede (lei impeditiva) ou
tenta nos impedir de fazer o bem. Nos versos seguintes Paulo explica a lei em
seus três “artigos”.
Versículo 22 (1º artigo): “Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus”.
Ele quer dizer que sua mente transformada deseja cumprir a lei de Deus.
Versículo 23 (2º artigo): “Mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a lei
do meu entendimento [...]”. Aqui Paulo fala de uma segunda lei, “outra lei”, que batalha contra a
primeira, “lei do meu entendimento”,
e o deixa refém de uma terceira lei.
Versículo 23b (3º artigo): “[...] e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus
membros”. A “lei do pecado”, que é
somatizada, é a terceira lei da qual ele fica refém.
Como dissemos, esta lei reverbera nos campos
cognitivo, afetivo e físico. No cognitivo por estabelecer uma guerra cujo front é a mente humana. No afetivo por agitar
suas emoções – “Miserável homem que
sou...”, diz ele no v. 24. E no campo físico por envolver a “lei do pecado” que está nos seus
membros.
Uma
outra lei -
O contexto nos mostra que este Paulo não é um Paulo antes da conversão – como
querem alguns – mas um discípulo que, mesmo transformado por Cristo, vivencia o
eterno conflito da luta do Espírito contra a carne (Gl 5.17). Este Paulo sou eu
e você, dependentes de repetidas intervenções do Espírito nesta lei
estabelecida em nós. Ou seja, somos dependentes de repetidos milagres nos
campos cognitivo, afetivo e espiritual.
Estes repetidos milagres se dão através de uma
outra lei citada pelo apóstolo em Romanos 8.2: “Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei
do pecado e da morte”.[4]
3.3. Alteração de
lei no campo social resultando em alterações sociológica, econômica e
política.
As ciências sociais contemplam, entre outras
áreas, os âmbitos da sociologia, antropologia, economia e política. Da mesma
forma como ocorre nas ciências da natureza e na psicologia, as ciências sociais
também têm suas leis, descobertas ou destacadas por diversos teóricos.
Um dos mais importantes teóricos da sociologia é
Karl Marx (1818-1883), cujos estudos apontam para as leis que regem a relação entre
o capital e o trabalho, entre o indivíduo e a sociedade, etc. Através de
conceitos como a “mais valia”, “ideologia”, as “ideias da classe dominante”,
entre outros, Marx construiu suas teorias sobre a forma como o capitalismo
oprime a classe trabalhadora e apontou para as possibilidades do socialismo e
do comunismo.
Outro teórico clássico da sociologia é Emile
Durkheim (1858-1917). Considerado fundador da sociologia científica com suas
leis sobre a sociedade, o indivíduo, as normas, a criminalidade e o suicídio. “Durkheim focalizou em sua concepção
sociológica as estruturas e as instituições sociais, considerando as novas
relações de poder que se instauravam em sua época”. (ULBRA, 2008).
Outro ícone da sociologia é o alemão Max Weber
(1864-1920), um revelador da natureza da ciência social e da ciência histórica,
conforme Japiassú e Marcondes (2006). Autor do clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-5), obra “na qual procura mostrar que uma análise
estritamente econômica seria insuficiente para explicar o surgimento do
capitalismo, devendo ser levados em conta elementos éticos, religiosos e
culturais.” (Japiassú e Marcondes, 2006, p. 281). Weber desenvolveu a
teoria dos quatro tipos de ação social: (1) ação social tradicional; (2)
ação social
afetiva; (3) ação social racional com
relação a valores; e (4) ação
social com relação afins. (ULBRA, 2008).
Há situações em que as leis das ciências sociais são alteradas
milagrosamente, com desdobramentos na sociologia, na economia e na política,
como intencionaremos demonstrar a seguir.
3.3.1 O êxodo do povo
hebreu do Egito
Narrados do livro de Êxodo até o livro de Josué, os eventos que marcaram
a saída do povo hebreu do Egito e a sua instalação como nação na Terra Prometida,
formam uma sequência de milagres divinos.
Champlin explica que os milagres que envolveram o êxodo “podem ser classificados em três grupos: 1.
milagres que provaram aos israelitas que Moisés tinha sido realmente enviado
por Deus. 2. o milagre das pragas que caíram sobre o Egito como castigo. 3.
milagres de providência e proteção divina no deserto.” (1991-B, p. 630).
Entretanto, esses milagres não cessaram neles próprios, resultando em implicações
sociológicas não menos milagrosas, provocando alterações na economia e na política
tanto do Egito – que teve sua mão de obra escrava cessada – quanto dos povos da
Palestina, cujas terras foram ocupadas na implantação de Israel, a nova nação.
É possível afirmar que as alterações sociológicas, econômicas e políticas
decorrentes do êxodo foram milagrosas quando consideramos que elas só ocorreram
em virtude dos milagres que se sucederam na saída do povo.
A peregrinação pelo deserto por quarenta anos foi, por ela só, um
verdadeiro milagre sociológico. Isso para não falarmos da quantidade de pessoas
envolvidas neste empreendimento. Calcula-se que em torno de dois milhões de
pessoas deixaram o Egito por ocasião do êxodo. A Bíblia fala em 600 mil homens,
além das mulheres, crianças e estrangeiros (Êxodo 12.37-38). Se considerarmos
que somente homens com idade de pegar em armas foram contados entre os 600 mil
– os hebreus saíram do Egito armados para guerrearem contra outros povos (Ex
13.18) –, o número de homens pode chegar a um milhão. Se estimarmos que para
cada homem houvesse em torno de uma a duas mulheres e duas a três crianças, a
população hebreia pode ter ultrapassado a casa dos cinco milhões de peregrinos.
Ao comentar a importância do êxodo na formação do Antigo Testamento,
Champlin (1991-B, p. 631) afirma que o episódio “[...] foi um marco na história de Israel, um evento que inspirou os
escritores do resto do Antigo Testamento. Era mencionado como um período em que
Deus exibiu seu poder e sua redenção, em favor de seu povo, como um exemplo do
que o poder divino pode fazer em favor de um povo que anda na retidão.”
3.3.2. O ressurgimento
de Israel como nação em 1948
O ressurgimento de Israel como nação em 1948 (decidido na histórica
votação da ONU em 29 de novembro de 1947), também pode ser considerado como um
milagre sociológico, se considerarmos que este evento se deu em cumprimento de
profecias do Antigo Testamento. Outro fator importante é que o ressurgimento político
de Israel tem implicações na discussão teológica sobre a restauração escatológica
e soteriológica da nação, doutrinas que discutem a salvação dos judeus como
povo eleito de Deus.
Quanto às profecias e seus desdobramentos, assim como quanto ao tema da
restauração de Israel, não trataremos no presente artigo para não fugir de seu
escopo.
A seguir apresentamos quatro quadros demonstrativos dos milagres
discutidos até aqui.
Os
milagres e suas execuções
|
Exemplo
|
Referência
|
Milagre executado
diretamente pelo próprio Deus
|
A Criação do céu e
da terra e de tudo o que neles há e a Criação dos seres humanos.
|
Gênesis 1
|
Milagre executado
por servos de Deus
|
O cajado de Moisés
se transforma em serpente quando jogado ao chão e se torna em cajado novamente
ao ser pego por ele.
|
Êxodo 4.2-4
|
Milagre executado
através de anjos de Deus
|
Dois anjos ferem de
cegueira os homens que queriam invadir a casa de Ló, impedindo que achassem a
porta.
|
Gênesis 19.11
|
Milagre executado
através de outros meios
|
A fala da jumenta de
Balaão lhe dando orientações espirituais.
|
Números 22.20-30
|
Quadro 01
Os milagres e suas respectivas alterações em leis concretas
|
Exemplo
|
Referência
|
Alteração de lei
natural no campo físico
|
O machado que boiou
numa ação de Eliseu.
|
2 Reis 6.1-7
|
A multiplicação do
azeite da viúva pelo profeta Elias.
|
I Reis 17.8-16
|
|
Alteração de lei
natural no campo químico
|
Jesus transforma a
água em vinho.
|
João 2.1-11
|
Alteração de lei
natural no campo biológico
|
Ressurreição de
Lázaro.
|
João 11.1-44
|
A figueira que se
secou.
|
Mateus 21.18-19
|
Quadro 02
Os milagres e suas respectivas alterações em leis
abstratas
|
Exemplo
|
Referência
|
Alteração de lei no
campo cognitivo
|
O ato de o Espírito
convencer o homem do pecado, da justiça e do juízo é um milagre e se dá no
intelecto.
|
João 16.6-8
|
A sabedoria de
Salomão pode ser considerada como resultado de uma intervenção divina no seu
comportamento intelectual.
|
2º Crônicas 1.7-12.
|
|
Daniel obteve uma
inteligência dez vezes maior que a dos demais colegas, após uma decisão
espiritual.
|
Daniel 1
|
|
Alteração de lei no
campo afetivo
|
A cura da alma da
mulher samaritana.
|
João 4.4-26
|
A cura das feridas
do coração (alma).
|
Salmo 147.3
|
|
Alteração de lei no
campo espiritual
|
A mesma ação do
Espírito em convencer o homem no campo cognitivo alcança o seu espírito,
operando nele os milagres da justificação, santificação e glorificação, ações
componentes da salvação.
|
João 16.6-8, Romanos
4.4-8, 1.7 e 8.30
|
Quadro 03
Alteração de lei no
campo social resultando em alterações sociológica, econômica e política.
|
O êxodo do povo
hebreu do Egito e sua instalação na Terra Prometida foi
um milagre operado por Deus com implicações sociológicas, provocando
alterações na economia e política tanto do Egito quanto da nova nação,
Israel.
|
Êxodo e Josué
|
O ressurgimento de
Israel como nação em 1948 também pode ser considerado como um milagre
sociológico, se considerarmos que este evento se deu em cumprimento de
profecias do Antigo Testamento.
|
Isaías 11.11-12 e 66.8 e Amós 9.14-15
|
Quadro 04
4.
A extensão da lista de milagres na Bíblia
Até então apresentamos diversos milagres conforme
suas classificações de acordo com a definição apresentada neste trabalho. Entretanto,
a relação de milagres na Bíblia é muito mais extensa que isso. Para ficarmos
somente no Novo Testamento, nele figuram pelo menos 15 categorias de milagres
realizados diretamente por Jesus, distribuídos em aproximadamente 45
referências nos quatro Evangelhos. Se considerarmos como milagre as expulsões
de demônios – há teólogos que não consideram o exorcismo como milagre – realizadas
pelo Mestre, essa lista sobe para 16 categorias e 56 referências.
Esses milagres estão distribuídos em: (1) transformação da água em vinho
(João 2.1-11); (2) alimentação
de multidões (Mateus 14.13-21 e 15.32-39, Marcos 6.30-44 e 8.1-10, Lucas
9.10-17, João 6.1-15); (3) calma de tempestade (Mateus
8.23-27, Marcos 4.35-41, Lucas 8.22-25); (4) ressurreição de mortos (Lucas
7.11-17 e João 11.1-44); (5) pesca maravilhosa (Lucas
5.1-11); (6) andar sobre as águas (Mateus
14.22-33, Marcos 6.45-52 e João 6.16-21); (7) cura de um leproso (Mateus
8.1-4, Marcos 1.40-45 e Lucas 5.12-16 e 17.11-19); (8) restauração
de vista aos cegos (Mateus 9.27-31 e 20.29-34, Marcos 10.46-52 e Lucas
18.35-43); (9) cura
de um surdo-mudo (Marcos 7.31-37); (10) cura de paralíticos e
aleijados (Mateus 9.1-18 e 12.9-14, Marcos 2.1-12 e 3.1-16, Lucas 5.17-26 e
6.6-11); (11) cura
de muitas mulheres (Mateus 9.18-26 e 15.21-28, Marcos 5.21-43 e 7.24-30 e Lucas
8.1-13, 40-56 e 13.10-17); (12) cura
do criado de um capitão romano (Mateus 8.5-13 e Lucas 7.1-10); (13)
cura da sogra de
Pedro (Mateus 8.14-15, Marcos 1.29-31 e Lucas 4.38-39); (14)
cura do filho de
um oficial (João 4.46-54) e (15) ressurreição da filha de um
oficial (Mateus 9.18-19 e 23-26, Marcos 5.21-24 e 35-42 e Lucas 8.40-42 e
49-56).
A expulsão de demônios aparece em Mateus 8.28-34,
12.22-37 e 17.14-21; em Marcos 1.21-28, 3.20-30, 5.1-20 e 9.14-29; e Lucas
4.31-37, 8.26-39, 9.37- 43 e 11.14-23.
5.
Leis naturais “revogadas” por leis sobrenaturais
É possível que Deus já tenha desenvolvido
planejada e antecipadamente todos os recursos milagrosos os quais disponibiliza
aos seus filhos de acordo com Sua Soberana Vontade. Deus não é um Deus de
improvisos e, portanto, é acreditável que ao “quebrar” uma lei da natureza
estabelecida por Ele, o faça se valendo de outra lei já criada, mas
desconhecida de nós.
Essa discussão é histórica na teologia e
possivelmente tenha começado com Agostinho, que defendia uma naturalidade dos
mesmos, afirmando, no entanto, uma naturalidade do ponto de vista de Deus
(Champlin, 1991). Ou seja, os milagres são vistos como sobrenaturais para nós,
mas naturais para o Criador.
Tomás de Aquino concordava em certa medida com
Agostinho, mas distinguia duas ordens da natureza, sendo uma conhecida por Deus
e outra conhecida por nós.
Champlin (1991, vol. 4, p. 266) afirma que
Deus parece contradizer ou
quebrar alguma lei natural, mas ele simplesmente aplica alguma lei superior,
anulando outra lei, inferior. Há uma suprema lei da natureza, dentro da qual
todos os milagres podem ser ajustados. O argumento filosófico-teológico dessa
abordagem é que Deus, que estabeleceu as leis naturais, jamais agiria
contrariamente a Si mesmo, quebrando, ocasionalmente, e por motivos especiais,
essa lei.
Sendo assim a natureza conhecida por Deus – como
afirmou Tomás de Aquino – e suas leis superiores referidas por Champlin, situam-se
numa dimensão ainda desconhecidas por nós, nos fazendo compreender os eventos
milagrosos como sobrenaturais.
6.
O milagre como base do Plano de Salvação
A realidade semeionológica ganha importância
quando analisada do ponto de vista da soteriologia (disciplina da Teologia
Sistemática que trata da salvação). Há uma quádrupla dimensão milagrosa na
execução do Plano de Salvação: (1) encarnação
e nascimento virginal de Cristo; (2) ressurreição de Jesus dentre
os mortos; (3) a salvação e conversão do ser
humano; e (4) a ressurreição e/ou
arrebatamento do crente. Esses quatro eventos basilares da salvação são todos milagrosos.
A encarnação e o nascimento de Cristo foi um evento primordialmente milagroso pelo
fato do Deus Filho haver sido gerado no ventre humano da virgem Maria, por obra
do Espírito Santo. A ressurreição de Jesus dentre os mortos, ponto culminante
do Plano de Salvação, não só foi um ato milagroso em si, como foi um evento que
possibilita a ressurreição do salvo no arrebatamento da igreja – um milagre no
passado que possibilita outro no futuro. A conversão e consequente salvação do
ser humano, como já vimos (ver item 3.2.1. O milagre da conversão e o seu caráter
universal),
também se dá milagrosamente. E, por último, o mesmo ocorre com a ressurreição e
arrebatamento dos salvos[5]. A
ressurreição será um acontecimento terrivelmente inexplicável. Será um evento numinoso
– ao mesmo tempo fascinante e amedrontador. Imagine leis sobrenaturais recompondo
corpos glorificados em lugar de organismos consumidos pela decomposição, tanto
dos salvos que foram sepultados em terra quanto dos que foram lançados no mar.
Na mesma dimensão de numinosidade se dará o arrebatamento. Imagine homens,
mulheres e crianças sendo “sugados” para cima, ao encontro do seu Salvador.
Quanto a estas coisas o apóstolo Paulo nos diz em 1 Coríntios 15.50-52:
Digo-lhes isto, meus irmãos: Um
corpo terreno, feito de carne e sangue, não pode herdar o Reino de Deus. Estes
nossos corpos mortais não podem herdar o que é imortal. Eis que eu lhes estou
contando este segredo maravilhoso: Nem todos morreremos, porém seremos
transformados. Tudo acontecerá num instante, num piscar de olhos, quando for
tocada a última trombeta. Porque virá do céu um toque de trombeta, e todos os
que já morreram, de repente ressuscitarão com novos corpos que jamais morrerão,
e todos nós seremos transformados. (Versão
Nova Bíblia Viva).
Champlin (1991, p. 268) relaciona outra não menos
atraente sequência de milagres que formaram a base para o surgimento do
cristianismo, afirmando que
(1)
O nascimento virginal de Jesus, (2) a estrela de Belém, (3) o véu do templo estranhamente partido ao
meio (4) a ressurreição especial dos
mortos por ocasião da ressurreição de Jesus Cristo, sendo que esta última foi o
grande milagre que deu origem ao cristianismo. (Numeração acrescentada por
nós).
6.1. A quadriga milagrosa da conversão e salvação
Por sua vez, a conversão e salvação do ser humano (terceiro item da quádrupla dimensão milagrosa na execução do Plano de Salvação) apresenta outra quadriga (quatro níveis de sentido) milagrosa. Ao se converter a Cristo o ser humano ganha a salvação, evento composto por quatro fenômenos milagrosos: (1) regeneração; (2) justificação; (3) santificação; e (4) glorificação.
Por sua vez, a conversão e salvação do ser humano (terceiro item da quádrupla dimensão milagrosa na execução do Plano de Salvação) apresenta outra quadriga (quatro níveis de sentido) milagrosa. Ao se converter a Cristo o ser humano ganha a salvação, evento composto por quatro fenômenos milagrosos: (1) regeneração; (2) justificação; (3) santificação; e (4) glorificação.
6.1.1.
Regeneração
Regeneração significa “ser gerado novamente”. É o milagre que nos ocorre quando somos
salvos. É o novo nascimento dito por Jesus a Nicodemos em João 3.3-5. “Aquele que não nascer de novo não pode ver o
Reino de Deus”, disse Jesus. Isso confundiu o fariseu Nicodemos, que
perguntou se era possível um homem, sendo velho, entrar novamente no ventre da
mãe e nascer. Ao que o Mestre lhe respondeu explicando que “aquele que não nascer da água e do Espírito
não pode entrar no Reino de Deus”, pois – complementou Jesus – “o que é nascido da carne é carne, e o que é
nascido do Espírito é espírito”.
6.1.2.
Justificação
Ser justificado é o mesmo que ser “ficado justo”. Ao sermos alcançados pela
salvação passamos do status de condenados para justos, milagre que ocorre numa
dimensão espiritual. Trata-se de um processo transformador explicado
teologicamente por Paulo em Romanos 3.21-31, onde ele trata da justificação
pela fé em Jesus.
6.1.3.
Santificação
No terceiro nível desta quadriga milagrosa ocorre
a santificação, processo pelo qual somos “ficados
santos”. A santificação não nos torna beatos e muito menos nos promove ao
elenco dos santos canonizados da História da Igreja. O sentido teológico de
santo é “separado”, condição na qual
Deus nos coloca para o seu serviço. Paulo (em sua pregação a Agripa, Atos 26.18)
explica que nesse processo somos convertidos das trevas à luz e convertidos do
poder de Satanás ao poder de Deus, recebendo “a remissão dos pecados e sorte entre os santificados pela fé” em
Jesus.
6.1.4.
Glorificação
Diferentemente dos três estágios anteriores, que
se dão no presente, a glorificação se dá no porvir. Após a ressurreição e o
arrebatamento da igreja, receberemos um corpo glorificado, semelhante ao que
teve Jesus após sua ressurreição. Um corpo glorificado não está limitado às
leis da natureza física, química ou biológica. Há uma possibilidade teológica
de que o corpo glorificado tenha uma psique, uma alma. Neste caso é de se crer
que esta psique, igualmente “glorificada”, não esteja sujeita às leis que
operam abstratamente na alma humana, recheando-a de neuroses e de sentimentos
psicopatológicos como os que nos ocorrem hoje.
Champlin vai dizer que “A glorificação espera-nos ainda no futuro, pois é o aspecto celeste da
salvação do homem, aquilo que o Senhor realizará, em último lugar, em favor das
almas humanas remidas.” (1991-C, p. 915).
Em Romanos 8.29-30 o apóstolo Paulo esclarece que
Deus, aos
que dantes conheceu, também os
predestinou para serem conformes [ter
a mesma forma] à imagem de seu Filho, a
fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a
esses também chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses
também glorificou. (Entre colchetes e grifos acrescentados).
Assim, se considerarmos que o cristianismo é o
evento histórico que conclui o Plano de Salvação, podemos afirmar que o
principal ou o maior dos milagres é a salvação do homem em Cristo Jesus.
7. O milagre e sua relação com os dons manifestacionais
7. O milagre e sua relação com os dons manifestacionais
Os milagres guardam uma relação considerável com
os dons espirituais. Para muitos estudiosos do assunto os dons podem ser
classificados em motivacionais, ministeriais e manifestacionais. Estes últimos
são aqueles que tratam de manifestações sobrenaturais do Espírito de Deus no
seu exercício, diferentemente dos dons motivacionais ou ministeriais, exercidos
por uma pessoa sob a ação do Espírito Santo, mas num âmbito natural das coisas.
Por exemplo, o dom de mestre, seja ele ministerial (Ef 4.11) ou motivacional (Rm
12.7) é exercido numa manifestação natural, já o dom de interpretar línguas,
por exemplo, é essencialmente sobrenatural.
Em 1 Coríntios 12.7-10, 28 temos uma relação de
dons manifestacionais, entre os quais destacamos os dons de curar (v. 9), poder
para operar milagres, profecia e variedade de línguas (v. 10). No versículo 28
Paulo explica que “A uns estabeleceu Deus
na igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro
lugar, mestres; depois, operadores de milagres; depois, dons de curar,
socorros, governos, variedades de línguas”.
8.
Tratando das questões iniciais
Analisados todos estes aspectos ficamos mais
próximos das respostas às questões inicialmente apresentadas neste trabalho, a
saber, “Deus ainda faz milagres? e Onde está o meu milagre?” A segunda pergunta depende da
primeira, pois se Deus não mais opera milagres, não faz sentido alguém procurar
pelo seu.
Outro dado a ser salientado é que a resposta da
primeira pergunta não está cercada da obviedade que parece ter. Embora a
resposta seja aparentemente óbvia no meio pentecostal, carismático e
neopentecostal, há entre esses segmentos pessoas que não estão tão certas do
“sim” à primeira questão e, consequentemente, não têm como responder ao “onde”
da segunda indagação.
A primeira questão, embora seja muito mais teológica
e filosófica que prática, não deixa de estar associada ao cotidiano da fé,
interessando, portanto, a todo cristão. A segunda pergunta, ao contrário da
primeira, é muito mais prática que teológica, porém, como já vimos é totalmente
dependente da primeira. Ela está muito vinculada aos segmentos pentecostal,
carismático e neopentecostal, integrando sua terminologia e presente até nos
seus jargões.
Para a um considerável número de teólogos e
seguidores do meio evangélico e protestante mais conservador, entre eles calvinistas,
reformados e batistas tradicionais, a questão já está resolvida: Deus não faz
mais milagres, não por não ter poder, mas por haver decidido cessá-los concomitantemente
com o encerramento de sua Palavra escrita.
8.1.
Deus ainda faz milagres?
8.1.1. Os
argumentos teológicos dos que defendem a cessação dos milagres[6]
A maioria das igrejas históricas defende a cessação
dos milagres e o faz com bases teológicas fincadas em sua tradição. Benjamim B.
Warfield, segundo Assis (p. 11), “credita
apenas ao período apostólico a sua ocorrência [de milagres], deixando de lado inclusive os primeiros séculos
da igreja cristã.” Warfield argumenta que “há pouca ou nenhuma evidência no todo para as obras miraculosas durante
os quinze primeiros anos da igreja pós-apostólica”, possivelmente se
referindo à falta de registros históricos de milagres. Mas Assis lembra que para
Philip Schaff, um dos maiores historiadores da igreja, os milagres duraram até
o século III, com a difusão da igreja e o governo de Constantino. Assis lembra
ainda que os pais da igreja – em especial Justino, Tertuliano e Orígenes – não
citam em seus escritos nenhum milagre parecido com os descritos no Novo
Testamento.
Mas essa posição, longe de ser recente, remonta à
Reforma Protestante, pois Martinho Lutero e João Calvino e outros reformadores também
defendiam a cessação dos milagres. Lutero até que cria em milagres, mas na sua
forma espiritualizada. Para o reformador alemão os milagres ocorriam apenas na alma
do crente quando de sua conversão, conforme explicado por Assis.
Calvino (2006, p. 23) escreveu em As Institutas que “já cessaram os milagres de poderes e aquelas operações manifestas que
eram distribuídos por imposição de mãos, os quais não subsistiram por muito
tempo.” Em seu documento doutrinário o fundador do presbiterianismo
argumenta que os milagres da igreja primitiva ocorreram para que
[...] a nova pregação do
evangelho e o novo reino de Cristo fossem iluminados e magnificados por
milagres inauditos e inusitados; mas quando o Senhor os fez cessar, com isso
não abandonou inteiramente sua igreja, mas declarou que seria mui excelentemente
manifestada a magnificência de seu reino e a dignidade de sua Palavra.
8.1.2. Argumentos
teológicos favoráveis à continuidade dos milagres
O fato de a história não registrar eventos milagrosos,
como parece alegar Warfield, não é um sinal de que os mesmos não ocorreram. A
história sempre é escrita pelos que dominam e sob o seu ponto de vista. No
dizer de Thomas Carlyle “A história seria
dominada por grandes homens, que criam e orientam” (Champlin, 1991-D).
Assim, os que escrevem a história o fazem do ponto de vista de seus dominadores
e criadores. É preciso saber que área da história não registra eventos
milagrosos. A Igreja Católica tem em seus processos de investigação para a
beatificação e canonização o registro de um sem número de milagres.
Quanto à posição de Lutero e Calvino e os demais
reformadores, é de se compreender que, como combatiam contra a Igreja Católica,
precisavam descredenciar suas práticas, entre elas a superstição que cercava os
milagres e sua “ligação direta ou
indireta aos santos, aos sacrários, às relíquias ou aos sacramentos”. Outra
razão é que a Igreja Católica tinha os milagres como forma de comprovar sua
legitimidade como igreja sucessora dos apóstolos (Assis, p. 12) e isso
precisava ser desconstruído pelos reformadores.
Um fator a ser considerado em favor da atualidade
dos milagres é a continuidade da história da igreja de Cristo, que continua
sendo construída e escrita ao longo dos séculos. Do fim da era apostólica e
início do período dos pais da igreja até nossos dias, sua missão continua. A
continuidade de sua missão está associada e condicionada à continuidade dos
dons do Espírito e também dos milagres. Afinal, Cristo fundou sua igreja sobre
o alicerce dos milagres (nascimento virginal e sua morte e ressurreição) e a levará
para o céu de forma milagrosa (arrebatamento e ressurreição dos mortos), o que
não justifica um interregno tão longo sem milagres. Ou seja, se o começo e fim
são milagrosos, por que o meio não o seria?
8.1.3. Argumentos
bíblicos favoráveis à atualidade dos milagres
Os argumentos teológicos se sustentam na Palavra
de Deus registrada na Bíblia, onde encontramos os principais argumentos
favoráveis à continuidade e atualidade dos milagres. Há vários textos bíblicos
que sustentam tal ideia, mas é o bastante a análise de apenas um, como veremos
a seguir.
Jesus em sua última aparição depois da
ressurreição (Marcos 16), ao orientar seus discípulos sobre o imperativo “Ide por todo mundo, pregai o evangelho a
toda criatura” (v. 15), fala sobre a continuidade dos milagres ao afirmar
que “estes sinais seguirão aos que
crerem...” (v. 17). De início podemos deduzir da necessária ligação entre o
“ide” e os “milagres”, pois se o “ide” é para os dias de hoje – nisso concordam
calvinistas, luteranos e os demais reformados – por que os “milagres” não o
seriam?
Entretanto, há um agravante no verso 15: Jesus
disse que os sinais “seguirão aos que
crerem”. Essa afirmativa, muito além de explicar que os milagres não
ocorrem porque certas pessoas não creem, mostra a imperiosidade dos milagres.
Em outras palavras, Jesus está dizendo que necessária e obrigatoriamente deve
haver milagres na missão da igreja em ir por todo mundo e pregar o evangelho a
todas as pessoas.
Nas palavras de Jesus, o imperativo não está
somente no “ide”, mas também na prática dos sinais. Ou seja, os sinais não são
opcionais. Não há como optar por pregar o evangelho sem a operação de milagres.
Na sequencia Jesus elenca (vs. 17 e 18) os sinais
obrigatórios da missão: (1) expulsar
demônios; (2) falar novas línguas; (3)
pegar em serpentes; (4) beber coisas mortíferas sem
sofrer dano – estes dois se referem às batalhas que travamos na dimensão
espiritual; e (5)
curar enfermos
sobre imposição de mãos.
8.2.
Onde está o meu milagre?
Cuidada a primeira questão, podemos passar para a
segunda. Queremos dizer com isso que se os milagres são atuais podemos começar
a responder a segunda pergunta: onde está o meu milagre?
8.2.1. A soberania de Deus
8.2.1. A soberania de Deus
Inegavelmente o milagre, assim
como toda dádiva de Deus para seus filhos, está em sua soberania. O tema da
soberania de Deus para estar em desuso nos dias atuais, ironicamente nos meios
onde mais os milagres são pregados e praticados, entre os pentecostais e, principalmente
entre os neopentecostais. Estes últimos têm demonstrado em seu discurso quase
que como uma obrigatoriedade de Deus em atendê-los. Mas vejamos a seguir o que
é a soberania de Deus.
Podemos definir a soberania de
Deus como seu direito de, no cumprimento de seus propósitos, fazer ou não o que
bem Ele quiser, da forma que lhe aprouver, no lugar e tempo onde achar melhor,
com quem ou para quem ele decidir. Champlin (1991-E, p. 313) define a soberania
de Deus como o “total domínio do Senhor
sobre toda a sua vasta criação. Como soberano que é, Deus exerce de modo
absoluto a sua vontade, sem ter de prestar contas a qualquer vontade finita.”
O apóstolo Paulo se viu diante
desta soberania em sua dramática conversão e durante a sua carreira cristã. Embora
fosse um importante instrumento nas mãos de Deus no processo de implantação da
igreja entre os gentios e no desenvolvimento das doutrinas fundamentais do
Evangelho, lidou com “um espinho na carne”
(2 Co 12.7), que considerou como “um
mensageiro de Satanás” para feri-lo e atormentá-lo. Não se pode afirmar ao
certo o que era esse mal que o afligia. A maioria dos estudiosos da Bíblia fala
em enfermidade e teólogos mais progressistas acreditam tratar-se de um pecado
do qual ele não conseguia se libertar. O fato é que, embora tenha implorado em
três ocasiões diferentes ao Senhor para que tirasse dele o tal “espinho” (v. 8),
Deus não quis fazê-lo.
Timóteo, seu discípulo, tinha
frequentes enfermidades, sendo uma delas no estômago (1 Tm 5.23), pelas quais certamente
o próprio Timóteo, Paulo e outros irmãos já tinham orado, porem Deus não curou.
Até mesmo a misericórdia de
Deus é distribuída por ele segundo a sua soberania. Em Êxodo 33.19 e em Romanos
9.15 Deus diz que se compadece e tem misericórdia de quem ele quiser. Em 9.18
Paulo diz que Deus “compadece-se de quem
quer e endurece a quem quer”.
Assim, ao buscarmos o milagre
que achamos que precisamos, devemos nos submeter a Deus e à sua soberania, que
decidirá se precisamos ou não.
8.2.2. A fé
necessária para o milagre
Tendo passado pelo crivo da soberania de Deus,
nosso milagre dependerá da nossa fé. O autor de Hebreus (11.6) diz que sem fé é
impossível agradar a Deus, sendo necessário que aquele que dele se aproxime,
creia em duas coisas: (1) que ele existe e que (2) “recompensará aqueles que sinceramente o procuram”. (Versão Nova
Bíblia Viva).
Em Mateus 13.58 lemos que Jesus “não fez ali [em sua terra] muitos milagres, por causa da incredulidade
deles.” Os milagres não ocorreram não porque a falta de fé das pessoas
trouxesse alguma dificuldade a Jesus em operá-los. É que seus milagres tinham
como propósito anunciar-lhes o Reino de Deus e não valia a pena falar desse
assunto a pessoas sem fé. “A operação de
milagres visa o aprofundamento da compreensão do homem sobre Deus. Essa é a
maneira de Deus falar dramaticamente para aqueles que têm ouvidos para ouvir.”
(Junta Editorial Cristã, p. 1042).
Destarte, ao buscarmos o milagre do qual necessitamos,
devemos fazê-lo com a consciência de que o mais importante é salvação da alma, tendo
fé para esta salvação e a fé que podemos alcançar o milagre.
8.2.3. O milagre
em nossas mãos
Por último, o milagre está em nossas mãos. Em
outras palavras, é nos dado por Deus operar milagres através das nossas mãos.
Em Êxodo 4.21 lemos que “Disse o SENHOR a
Moisés: Quando voltares ao Egito, vê que faças diante de Faraó todos os
milagres que te hei posto na mão [...]”. (Grifo acrescentado).
Na primeira multiplicação dos pães e peixes
(Mateus 14.13-20) Jesus partiu os cinco pães que tinham, deu-os aos seus
discípulos e estes os distribuíram entre as pessoas, de sorte que quanto mais
partiam os pães, mais eles se multiplicavam. Não foi Jesus quem multiplicou propriamente
dito os pães. O milagre do Mestre esteve em possibilitar aos discípulos que
multiplicassem o alimento de forma também milagrosa.
O milagre está em nossas mãos da mesma forma que
esteve nas mãos dos discípulos. Porém, isso tem outras implicações. Como vimos
anteriormente, Jesus nos disse que os sinais milagrosos haveriam de seguir os
que cressem. No entanto, os sinais elencados por ele estão todos ligados ao
fazer a obra de Deus. Por que haveríamos de expulsar demônios, falar novas
línguas, pegar em serpentes, beber coisas mortíferas sem sofrer dano e curar
enfermos sobre imposição de mãos, senão no trabalho do mestre? Os discípulos
que multiplicaram os pães junto com Jesus não o fizeram para eles, senão para a
multidão que os seguia.
Não há nada de errado em buscarmos milagres que
nos favoreçam – aliás, não devemos abrir mão deles – no entanto, é mais
legítimo buscarmos milagres em favor de nós mesmos quando estamos sendo canal
de milagres aos outros.
9.
Os milagres e seus diversos propósitos
Deus não faz nada sem um propósito e esse mesmo
princípio se aplica aos milagres. Segundo Colin Brown, citado por Assis (p. 10),
“Orígenes dizia que sem milagres e
maravilhas os apóstolos não teriam persuadido aqueles que escutaram novas
doutrinas e novos ensinamentos para largar sua religião e acertar [seguir] os apóstolos”. Ainda segundo Brown,
para Gregório de Nissa os milagres foram necessários para convencer os homens
da deidade de Jesus.
Teologicamente há outros propósitos para os
milagres, entre eles o de abrir portas para o evangelismo, a compaixão de Deus
em favor dos que sofrem com enfermidades, a glorificação da pessoa de Deus e,
no dizer de Assis (p. 26) autenticar a revelação e credenciar Jesus como seu
emissário e autor.
9.1.
Os diversos propósitos do milagre nas referências bíblicas onde a palavra
aparece
Algumas referências bíblicas onde aparece a
palavra milagre, também nos dão um
indicativo desses propósitos:
Demonstrar o
poder de Deus:
“e o
SENHOR nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande
espanto, e com sinais, e com milagres”. (Deuteronômio 26.8)
Aplicar o juízo
de Deus: “Fizeste sinais e milagres
contra Faraó e seus servos e contra todo o povo da sua terra, porque soubeste
que os trataram com soberba; e, assim, adquiriste renome, como hoje se vê.”
(Neemias 9.10)
Atribuir louvor a
Deus: “E, quando se aproximava da
descida do monte das Oliveiras, toda a multidão dos discípulos passou,
jubilosa, a louvar a Deus em alta voz, por todos os milagres que tinham
visto.” (Lucas 19.37)
Demonstrar a
aprovação do ministério de Jesus:
“Varões
israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus
diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus
realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis.” (Atos 2.22)
Dar testemunho do
Evangelho de Salvação de Cristo: “O
próprio Simão abraçou a fé; e, tendo sido batizado, acompanhava a Filipe de
perto, observando extasiado os sinais e grandes milagres praticados.” (Atos
8.13)
“E Deus, pelas mãos de Paulo, fazia milagres
extraordinários”. (Atos 19.11)
“Como escaparemos, se negligenciarmos tão grande
salvação? Esta salvação, primeiramente anunciada pelo Senhor, foi-nos
confirmada pelos que a ouviram. Deus também deu testemunho dela por meio de
sinais, maravilhas, diversos milagres e dons do Espírito Santo distribuídos de
acordo com a sua vontade.” (Hebreus 2.3-4)
Demonstrar a
predominância da graça e da fé sobre as obras: “Aquele, pois, que vos concede
o Espírito e que opera milagres entre vós, porventura, o faz pelas obras da lei
ou pela pregação da fé?” (Gálatas 3.5)
10.
Semeionologia prática: a doutrina bíblica do milagre e suas implicações na vida
do crente
A capacidade que Deus dá aos seus de operar
milagres no poder do Espírito Santo e no nome de Jesus, tem algumas implicações
na vida do cristão. Da mesma forma que fizemos no tópico imediatamente anterior,
selecionamos aqui algumas referências onde o termo milagre aparece, visando encontrar os indicativos de uma
semeionologia prática.
Deus põe milagres
nas mãos dos seus: “Disse
o SENHOR a Moisés: Quando voltares ao Egito, vê que faças diante de Faraó todos
os milagres que te hei posto na mão; mas eu lhe endurecerei o coração, para
que não deixe ir o povo”. (Êxodo 4.21). (Grifo acrescentado).
Há situações onde
o povo de Deus é desafiado a operar milagres para vencer as forças do mal: “Quando Faraó vos disser: Fazei
milagres que vos acreditem, dirás a Arão: Toma o teu bordão e lança-o diante de
Faraó; e o bordão se tornará em serpente”. (Êxodo 7.9)
Operação de
milagres não significa necessariamente comunhão com Deus, santidade ou salvação:
“Muitos,
naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós
profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome
não fizemos muitos milagres? Então eu lhes direi claramente: Nunca os
conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!” (Mateus 7.22-23)
Ser alcançado por
milagres não significa necessariamente arrependimento: “Passou, então, Jesus a
increpar as cidades nas quais ele operara numerosos milagres, pelo fato de não
se terem arrependido: Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro
e em Sidom se tivessem operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que
elas se teriam arrependido com pano de saco e cinza”. (Mateus 11.20-21)
A incredulidade
de expectadores – da plateia – pode inibir a operação de milagres: “E não fez ali muitos milagres,
por causa da incredulidade deles.” (Mateus 13.58).
O mal também
opera milagres: Mateus
24.23-24: “Se, pois, alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo aí! não
acrediteis; porque hão de surgir falsos cristos e falsos profetas, e farão
grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os
escolhidos.” (Mateus 24.23-24).
Conclusão
As deduções às quais chegamos após as reflexões, análises
e hipóteses que incluem essa pesquisa, nos abrem possibilidades ímpares. Uma
delas é reconhecer o quanto a vida cristã está atrelada aos milagres. Ser
discípulo de Jesus é percorrer uma via de milagres que nos liga de um ponto de
partida a um destino, ambos – partida e destino – igualmente milagrosos. Mesmo
que concordássemos com Lutero de que milagres acontecem somente numa dimensão
espiritual, apenas na alma do crente quando de sua conversão, estaríamos reféns
de uma vida de milagres, pois constantemente necessitamos ser escondidos no
“Castelo forte”, como diz o reformador alemão, entre as muralhas da sua fortaleza,
guardados do “vil acusador” pelo Senhor que “triunfa nas batalhas”.
Reconhecemos que estamos sempre rodeados de
milagre, mesmo sabendo que, paradoxalmente, nem tudo o que recebemos de Deus é
milagre. Há favores que recebemos dele que não estão na categoria dos milagres.
As bênçãos não são todas milagrosas; na sua maioria elas são dádivas naturais que
não conseguiríamos sem a ajuda Pai. As suas misericórdias não são todas
sobrenaturais ou milagrosas; elas representam a tolerância de Deus em não nos
punir no nível que merecemos. As graças alcançadas não são todas resultado de
milagre; elas são favores que não merecemos ou que podemos pagar.
Por
fim, reconhecemos que somente caminhando pela via do milagre é que igreja se
fortalece para confrontar os valores do relativismo e para oferecer seus
valores como “sal e luz” na cultura do sec 21. Só na via dos milagres que discípulo
e discípula constroem sua identidade de gênero conforme criados por Deus, homem
e mulher, “macho e fêmea” que constituem famílias que ampliam as fronteiras da
igreja através da evangelização, levando pessoas ao milagre da salvação.
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Donald W. O ambiente e os processos de maturação: Estudos sobre a teoria
do desenvolvimento emocional. Porto Alegre : Artmed, 1983.
[1]
Nelson Gervoni é
teólogo (Instituto Teológico Batista de Bauru), pedagogo (ULBRA), especialista
em Relações Interpessoais na Escola (UNIFRAN) e psicanalista (Sociedade
Campinense de Psicanálise). É professor universitário e professor na Rede
Pública Estadual. Congrega e auxilia como pastor na Comunidade Cristã Família
da Fé de Campinas/SP.
[2]
Informamos no texto quando a versão utilizada não for a ARA.
[3]
Neologismo = Palavra nova, ou acepção nova de uma palavra já existente na
língua ou idioma.
[4] Os
grifos deste tópico foram acrescentados pelo autor.
[5] A
Bíblia diz que “[...] os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro; depois
nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com ele [Cristo] nas nuvens, a encontrar o
Senhor nos ares [...]” 1 Tessalonicenses 4.16b-17a.
[6]
Propositalmente deixamos de citar aqui as posições da teologia liberal e do
racionalismo sobre o assunto, por não ser esse o objetivo do trabalho.