Procuram-se pastores para noites escuras
O
evangelista Lucas faz uma observação quanto ao nascimento de Jesus que passa despercebida
da maioria dos leitores. Ele narra que próximo ao local onde nasceu o Menino “havia pastores que estavam nos campos e que
durante a noite cuidavam dos seus rebanhos” (Lucas 2.9).
Geralmente
quando pensamos em pastores cuidando de seus rebanhos fazemos uma imagem diurna
dessa atividade. Mas é óbvio que durante a noite, enquanto o rebanho dormia, eles
estavam vigilantes. Lucas nos fala da atividade pastoril noturna e é sobre ela
que gostaríamos de pensar nas próximas linhas.
Sabemos
que o trabalho dos pastores era árduo e arriscado, fatores que se agravavam
durante a noite, quando os riscos de feras e salteadores eram maiores. Sabemos
também que a atividade pecuária do pastoreio — domesticar,
alimentar, guardar e proteger o gado ovino — se compara e
ao mesmo tempo simboliza a atividade religiosa, sacerdotal ou ministerial de
conduzir pessoas no caminho da espiritualidade. Parece-me que esta metáfora é
própria do cristianismo, em especial dos protestantes e/ou evangélicos, embora
padres também tenham a função do pastoreio dos fieis.
A
Bíblia apresenta várias passagens onde a função pecuária do pastor é comparada
à atividade pastoral religiosa. Jeremias 23 e Ezequiel 34 são as mais
conhecidas no Antigo Testamento. Jesus também se valeu dessa comparação, por
exemplo, em Mateus 9.36, quem sabe referindo-se a passagens do AT como Números
27.17, 1 Reis 22.17, 2 Crônicas 18.16, Jeremias 50.6, Zacarias 10.2, entre
outras referências. Assim, fechando um pouco mais o foco gostaria de trazer
para o campo da espiritualidade a afirmação de Lucas 2.9. Também gostaria de
acrescentar outra metáfora, a de pastorear durante a “noite” como um símbolo do
cuidado espiritual nos momentos mais difíceis das pessoas. Dessa forma, assim
como o pastor pecuário cuidava tanto de dia quanto de noite dos animais sob a sua
responsabilidade, pastores espirituais devem cuidar das ovelhas não só nos
momentos felizes (dia), mas nas suas dores, aflições, angústias, etc. (noite)
das ovelhas.
A
impressão que tenho é que atualmente se faz no meio evangélico —
sou evangélico e não conheço o meio católico — uma
imagem do pastoreio espiritual da mesma forma como fazemos uma imagem diurna da
função do pastor pecuário. Ou seja, parece que os pastores ajustaram seu ofício
exclusivamente para os momentos felizes das suas ovelhas. Parece que a
atividade pastoral se transformou em profissão, em muitos casos elevadamente elitizada
e bem remunerada, tornando a relação pastor-ovelha igualmente profissional.
Nesse modelo profissional o “técnico” se relaciona com o “cliente”
exclusivamente no espaço profissional (o templo),
fornece (vende) os seus produtos (sermões, ensino,
boa performance, status, etc.) e, terminado o trabalho (o culto), cada um vai
para o seu mundo, para as suas noites (dores,
aflições e angústias), inclusive o próprio pastor que por ninguém é pastoreado,
se relacionando com os seus líderes (bispos, apóstolos, presidentes) no mesmo
modelo “diurno” — tanto é que nos últimos dias dois pastores cometeram
suicídio no Brasil.
O
modelo diurno de pastoreio é egoísta, ganancioso e voltado para o dinheiro (a
lã das ovelhas). Torna-se mais cruel em épocas como a que vivemos atualmente,
onde as dores, aflições e angústias se agravam com as crises. Entretanto, este
não é um modelo novo. Aliás, ele é tão antigo quanto à própria metáfora da
função no Antigo Testamento. Se não, vejamos.
O
profeta Ezequiel (34.2-6), mais de 500 anos antes de Cristo, fez um contundente
alerta contra os pastores — religiosos — que com pouco
esforço é aplicado à situação atual. Ele relata situações onde esses líderes:
1- Cuidavam
somente de si mesmos;
2- Interessavam-se,
como mercenários, somente pelo dinheiro do povo (comiam a coalhada e se vestiam
da lã);
3- Desprezavam
o trabalho espiritual de cuidado do rebanho;
4- Não
se importavam com as feridas emocionais das pessoas;
5- Não
se importavam com as pessoas que se desgarravam nem buscavam as que se perdiam;
6- Lideravam
com prepotência, tirania e brutalidade.
Por essa razão acontecia naqueles tempos
o que se repete hoje, quando milhares de pessoas estão decepcionadas e até
indignadas com as instituições religiosas (leia-se igrejas). Por estes motivos tem
se multiplicado o fenômeno dos “desigrejados” Pois como afirma Ezequiel, as ovelhas
“estão dispersas, porquanto não há um só
pastor de verdade, e ao se espalharem sem rumo, tornaram-se presas fáceis e
alimento para todos os animais selvagens”.
Assim, diante dessa realidade procuram-se
pastores dispostos a se importarem com os sofrimentos dos seus liderados.
Procuram-se pastores que visitem os pobres e doentes de suas igrejas; que se
importem mais com um irmão que está enfermo e não tem dinheiro para comprar
remédio, que com a construção do novo templo ou com a decoração do antigo, para
dar só um exemplo.
Procuram-se pastores que estejam
dispostos a pastorear não somente durante o dia, em tempos de bonança, mas
também durante a noite, tempos de angústia, aflições e dores das pessoas.