A relatividade das posições doutrinárias no meio evangélico: o desafio de estudar e ensinar teologia sistemática
Nelson Gervoni |
Nelson
Gervoni[1]
Estudar
ou ensinar teologia, principalmente a sistemática, no meio evangélico é um
desafio interessante quando se transita em meio à diversidade denominacional. Isso
não aparece tanto se você leciona ou estuda numa instituição denominacional
dentro de uma perspectiva e referencial teóricos delineados, ou se você está
numa instituição interdenominacional, mas considera apenas seu ponto de vista
teológico.
Dito
de outra forma, se a pessoa dá aula ou é aluno numa faculdade teológica de
determinada denominação, defenderá ou assimilará o seu ponto de vista
doutrinário e desconstruirá as ideias contrárias de forma mais confortável,
pois é a posição teológica acreditada e praticada na denominação que é ensinada
na instituição.
Por
outro lado, se a pessoa é um docente fortemente arraigado numa denominação, mas
atua numa faculdade interdenominacional onde a pluralidade doutrinária tem
espaço acadêmico garantido, ele poderá se portar de diversas maneiras, das
quais destacamos três: (1) apresentará e defenderá sua posição teológica, não
se importando com o que pensa o seu público diversificado; (2) defenderá seu
ponto de vista, mas apresentará as demais concepções, deixando seus alunos
livres para pensar; ou (3) perceberá que há certa relatividade “bíblica” nas
diversas doutrinas e lidará bem com essa ideia.
Transposição terminológica – uma
palavra inicial
Neste
artigo utilizaremos conceitos que nem sempre deverão ser interpretados ou
compreendidos da mesma forma que em sua área de origem. Há uma ideia sobre a
qual refletimos em nossas aulas e que apresentamos aqui, chamada por nós de transposição
terminológica. Essa ideia diz que quando transpomos ou levamos um termo
de uma área do conhecimento, ou da ciência, para outra, ele pode ganhar
contornos e significados diferentes. Vamos pensar em dois exemplos.
Primeiramente peguemos a palavra “escatologia”, largamente usada no campo da
teologia, cujo significado, como sabemos, é “estudo das últimas coisas”. Mas se
esse termo for transposto para a biologia, seu significado será “estudo das
fezes ou do catarro”. É que escathos, do grego, é “ultimo” ou “final” e as
fezes e o catarro são produtos finais do organismo. Outro termo é “ego”. Na
teologia dizemos que o homem precisa suplantar o seu ego para, assim, se encher
do Espírito. Porém, ao transpormos “ego” para a psicanálise, suplantá-lo não
seria recomendável, pois sem ele haveria uma espécie de desestruturação
psíquica. Dito de outra forma, “escatologia” e “ego” na teologia têm
significados diferentes dos adquiridos respectivamente na biologia e na
psicanálise. Assim, cometemos grave erro quando fazemos uma transposição
terminológica entre áreas do conhecimento, insistindo em que o significado
permaneça o mesmo.
Também
erramos quando exigimos que um termo tenha sempre o mesmo significado que teve
na sua origem. Por exemplo, “eclésia”, que traduzimos como “igreja”, significa
“assembleia”, mas hoje o termo “igreja” significa muito mais que assembleia.
Outro exemplo é a palavra “pedagogia” que em sua origem significa conduzir ou
ensinar a criança. Entretanto, hoje aplicamos métodos pedagógicos no ensino de
adulto, o que a rigor deveria se chamar “andragogia”.
Dessa
forma, nesse artigo utilizaremos termos ou conceitos que, vistos fora de suas
áreas originais, poderão ter outros significados. É o caso de axiologia,
paradoxo, relatividade, relativismo, absolutividade, entre outros.
Relatividade “bíblica” da
doutrina
Há
algum tempo temos feito a seguinte reflexão, inclusive com nossos alunos.
Imagine que pudéssemos reunir, para um são e respeitoso debate doutrinário,
expoentes e intelectuais da teologia de diversas denominações, homens de vida
santa e digna, para discutir, por exemplo, a doutrina da salvação, obviamente
do ponto de vista predominantemente bíblico. Em torno de uma grande mesa,
coordenada por um mediador, teríamos representantes dos batistas,
presbiterianos, metodistas, luteranos, assembleianos, nazarenos, anabatistas
etc. Haveria certamente pontos de convergência entre eles, mas divergiriam em
diversos aspectos, todos eles com textos bíblicos que dariam base para as suas ideias.
Predestinação,
livre-arbítrio, possibilidades de perda ou de perenidade da salvação, pré e pós-tribulacionismo,
pré, pós e amilenismo, dispensacionalismo, monergismo e outras concepções
divergentes entre elas, mas, vale repetir, profundamente amarradas em textos
bíblicos e sustentadas teológica e historicamente pelos pensadores,
pesquisadores, autores e professores de suas respectivas denominações.
Particularmente
acreditamos que uma das razões para isso é que cremos da forma que cremos,
porque algum dia alguém nos ensinou conforme a maneira que acreditava ser não
somente correta, mas a única correta. São as lentes com as quais lemos o mundo
e as coisas, que, à semelhança dos óculos que usamos, foram desenvolvidas por
outras pessoas e entregues a nós. Dentro dessa analogia das lentes e dos óculos,
a grande maioria não é formada por “oftalmologistas” nem por “técnicos de
óptica” e, portanto, não sabe como fazer suas próprias lentes, com isso
dependendo das lentes de outros.
Isso
nos faz crer que uma pessoa, por exemplo, com convicções batistas profundas,
filha de pais batistas ou convertida mais tarde numa igreja batista, seria uma
ardorosa defensora do calvinismo caso tivesse nascido num lar presbiteriano ou
conhecido a Cristo posteriormente numa IPB, IPI ou outra igreja presbiteriana.
É claro que o contrário também é verdadeiro. Também é verdadeiro que as
exceções devem ser consideradas, por exemplo, no caso de alguém que pertence a
uma denominação e mais tarde migra para outra de convicções doutrinárias
diferentes.
Mas
esta problemática não é exclusividade da teologia, ocorrendo nas distintas
áreas do conhecimento e nas ciências. Temos visto isso na Educação e na
Psicanálise, nossas duas outras áreas de atuação profissional. Tanto é que a
história nos mostra que, assim como Lutero e Calvino se separaram por
divergências teológicas, Freud e Jung se apartaram por desarmonias teóricas. Aliás,
isso nos faz pensar que na realidade as divisões teológicas são meras dissensões
teóricas e conceituais.
A apologética e o dogmatismo
Toda
essa discussão nos remete a dois conceitos importantes, o de apologética e o
que trata dos dogmas e do dogmatismo, como veremos adiante.
Mas
antes é bom termos uma ideia de axioma, axiologia e axiomática, pois, a exemplo
da filosofia, a teologia também está ligada e é dependente desses conceitos. Um
axioma
“[...] é uma proposição, um pressuposto ou uma verdade que defendemos.
Tanto o ensino religioso quanto o ensino teológico são axiológicos e
axiomáticos. Ou seja, partem de uma verdade na qual se crê, se ensina e se
pratica.”[2]
Por sua vez a axiologia[3]
é ação da educação ou do ensino, voltada para a absorção e interiorização das
verdades apresentadas e aclaradas pelo axioma. Por último, podemos dizer que o
ensino teológico se dá na perspectiva axiomática, pois parte dos axiomas
que acredita e defende. Essas coisas são boas. Temos nossos axiomas e agimos de
forma axiológica e axiomática.
Apologética
- É a apologética que vai dar
sustentação ao trabalho axiológico e axiomático. Primeiramente se constroem, ao
longo do tempo, os axiomas, as verdades nas quais acreditamos. Feito isso,
esses axiomas precisam ser ensinados, compartilhados, multiplicados,
socializados. Isso se dá através da axiologia, do ensino, da prática “pedagógica”
na seara teológica ou mesmo filosófica. Mas por vezes nossos axiomas são ameaçados
de desconstrução — ou mesmo de
destruição — ante outras
verdades, possibilitando paradoxos.[4]
A
apologética é a área da teologia que visa defender racionalmente a fé cristã
dos ataques a qualquer um dos seus dogmas. Tem por objetivo estruturar a compreensão
da Revelação cristã, através de argumentos desenvolvidos racionalmente ao longo
da história do pensamento cristão.[5]
Dogmatismo
- O parágrafo anterior nos fala de
dogmas. Se por um lado a fé cristã é estruturada a partir dos seus axiomas, a
religião ou a religiosidade — ou,
neologicamente falando, o religiosimo —
parece querer se sustentar a partir dos dogmas. Isso nos remete à busca que
algumas pessoas tentam fazer da prática do cristianismo desprovida ou depurada
da religiosidade.
Japiassú
explica que para a filosofia o dogma é uma “Doutrina
ou opinião filosófica transmitida de modo impositivo e sem contestação por uma
escola ou corrente de pensamento, fazendo apelo a uma adesão incondicional.”
Do ponto de vista da teologia ele apresenta o conceito como “Doutrina religiosa fundada numa verdade
revelada e que exige o acatamento e a aceitação incondicionais por parte dos
fiéis”.[6] Mas note que nas duas
definições é apresentada a ideia de imposição.
É
possível se sustentar um dogma até mesmo a partir da Bíblia. Aliás, as
Escrituras são um celeiro de dogmas. É o caso do catolicismo, cujos dogmas se
sustentam no Magistério da Igreja e nas Escrituras. Entretanto, também aqui
ficamos diante de uma questão de ponto de vista, pois o que para uns é dogma,
para outros é axioma. É o caso, por exemplo, de doutrinas como a da Trindade ou
do Nascimento Virginal de Cristo. Para a maioria dos segmentos do cristianismo
esses pontos são fundamentais e axiomáticos, enquanto que para céticos tais
conceitos não passam de dogmas.
Relatividade
X relativismo - Tais reflexões nos colocam diante do que chamamos no início desse
artigo de relatividade da doutrina. Ou seja, a doutrina que é tida como
certa para uns, é considerada errada para outros, dependendo meramente do ponto
de vista do observador. Por exemplo, um teólogo das Assembleias de Deus defende
a doutrina pré-tribulacionista, tendo-a como bíblica. Enquanto isso um teólogo
presbiteriano a refuta, usando a mesma Bíblia. É certo que essa abordagem pode causar certo
desconforto inicial em algumas pessoas. Afinal, nossa cosmo-visão é construída
em grande parte por intervenções alheias em nossas subjetividades, sem que nos
demos conta disso.
Em
geral isso é chamado na reflexão teológica ou filosófica de relativismo.
Entretanto, neste artigo arriscaremos substituir esse conceito pelo de relatividade[7]. A
relatividade considera a possibilidade de distintas compreensões, conforme os
diferentes pontos de vista. Ela dialoga com naturalidade com as diversas concepções.
Quando lidamos bem com a relatividade compreendemos que, apesar de nos
sentirmos confortáveis com determinada doutrina, existem outras formas de
interpretação que também são válidas. Veremos que nossas concepções são
verdades para nós, mas essas verdades não precisam ser necessariamente
absolutas.
Mas,
se aquilo que a filosofia e a teologia chamam de relativismo nós chamamos de
relatividade, o que seria então o relativismo? Nessa perspectiva o relativismo
é a postura de achar que tudo é relativo, não somente no campo das ideias, mas
ainda no âmbito dos valores. Para esse relativismo, por exemplo, os valores são
“[...] relativos a uma determinada
cultura e a uma determinada época, podendo variar no espaço e no tempo, não
possuindo fundamentos absolutos, nem caráter universal.”[8]
Assim,
adotar uma postura de relatividade seria um meio termo ou um ponto de
equilíbrio diante de uma atitude de relativismo. Outra possibilidade de
equilíbrio é a absolutividade, conforme veremos a seguir.
A
absolutividade X absolutismo - Antes mesmo
que alguém estranhe e diga que nunca viu a palavra ou o conceito de
absolutividade, é bom dizer que ele é recorrente na teologia, filosofia e
aparece nas ciências jurídicas. A absolutividade, como postura intelectual ou
acadêmica, faz um contraponto com o absolutismo. Uma mente tendente ao
absolutismo trata as ideias ou verdades nas quais acredita como soberanas,
incontestáveis e inquestionáveis. Outra característica do absolutismo é o
maniqueísmo ou o dualismo, onde não existe espaço para o meio termo, vendo tudo
como “certo” ou “errado”, “bem” ou “mal”, “céu” ou “inferno” etc.
Já
a absolutividade entende que há certas coisas que são realmente polarizadas ou
dualizadas, mas que nem tudo na vida é “oito ou oitenta”. A absolutividade
empresta certa relatividade às ideias e às concepções. Por exemplo, uma pessoa
pode ser “criacionista” — no
sentido de crer que o Universo foi criado por Deus —,
mas dialogar com certas ideias “evolucionistas”, por exemplo, de que a vida
começou nas águas e culminou com a formação do homem, pois tanto a narrativa da
Criação quanto as ideias darwinistas dizem a mesma coisa. Outro exemplo é crer
que Deus fez o mundo em sete dias, mas esses dias não precisam ser literalmente
de 24 horas, podendo ser sete “eras geológicas”.
Conclusão
Não
há dúvida que tanto para o professor quanto para o aluno é importante ter um
“referencial teórico”, algo que se acredita e se defende que como sendo válido.
Não existe, na pesquisa, nas ciências humanas ou nas áreas de saber, como a
teologia e a filosofia, a postura do tipo “em cima do muro”, ou “tanto faz como
tanto fez”. É importante e necessário pertencer ou aderir determinada corrente
ou escola de pensamento. Não há nada de errado em ser calvinista ou arminiano,
dispensacionalista ou substitucionista (da teologia da substituição), crer na
possibilidade de perda ou perenidade da salvação. É correto ser uma coisa ou
outra.
O
que precisamos tomar cuidado é com a postura que nos leva a acreditar,
inegociavelmente, que a forma como pensamos é a única exclusivamente certa e
que tudo o que discorda disso é desprovido de verdade. No meio acadêmico é
necessária a capacidade de se dialogar com as diferença e com o diferente. Mas
mesmo agindo assim é necessário o cuidado de, no dizer de Tania Navarro Swain,
não olhar o diferente exclusivamente a partir do nosso referente, que é o
equívoco de dizer que aceita a ideia do outro, mas deixando claro que a noss é
bem melhor.
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REFERÊNCIAS:
GERVONI,
Nelson. Curso de aperfeiçoamento pedagógico para um ensino de excelência: conceitos, princípios e a psicologia da
educação. Campinas: Editora Sã Palavra, 2018.
JAPIASSÚ,
Hilton. Dicionário básico de filosofia. 4.ed. atual. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
[1]
Nelson Gervoni é tem formação em Teologia, Pedagogia e Psicanálise. É
pós-graduado em Relações Interpessoais na Escola e pesquisador em Psicologia
Analítica.
[2]
GERVONI, 2018, p.80.
[3]
Aqui houve uma transposição terminológica. Na filosofia e na psicologia moral,
axiologia
é a “Teoria dos valores em geral, especialmente dos valores morais. O termo axiologia designa a filosofia dos
valores [...]”. (JAPIASSÚ, 2006, p.23).
[4]
Grosso modo, um paradoxo se forma quando estamos diante de duas verdades e uma
parece contradizer a outra. Por exemplo, o Brasil tem 52 milhões de pessoas
vivendo na pobreza, segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais 2017,
divulgada pelo IBGE no mesmo ano (primeira verdade). Ao mesmo tempo, a
obesidade cresce assustadoramente no país, afetando mais da metade da
população, de acordo a ABESO - Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade
e da Síndrome Metabólica (segunda verdade).
[5]
JAPIASSÚ, 2006.
[6]
JAPIASSÚ, 2006, p.78.
[7]
Outro exemplo de transposição terminológica. Em sua origem a relatividade
é a teoria “Formulada por Einstein em 1905 (‘relatividade restrita’) e ampliada
em 1913 (‘relatividade generalizada’)”, que explica, entre outras coisas, que
“O movimento é sempre relativo a um ponto de referência”, não oferecendo base
para o “conceito de movimento absoluto”. (JAPIASSÚ, 2006, p.238).
[8]
JAPIASSÚ, 2006, p.238.