Enquanto a capelania vai à empresa, o coaching e a psicologia vão à igreja

Nelson Gervoni
Nelson Gervoni[1]
Há duas práticas no campo da ajuda profissional a pessoas, que têm tomado cada vez mais lugar no ministério pastoral: a capelania e o coaching. Entretanto, este último alcançou espaço ainda maior no meio evangélico entre pastores e membros em geral, que têm buscado nessa ferramenta tanto o desenvolvimento pessoal, quanto uma nova perspectiva profissional. É crescente o número de ministros do Evangelho que, como fazem outros profissionais, como psicólogos, por exemplo, têm migrado para o coaching como alternativa de trabalho. Enquanto a capelania é ligada ao meio religioso e espiritual, a origem do coaching está associada ao mundo corporativo e à área de recursos humanos.
O fenômeno da correlação das áreas
Entretanto, há um fenômeno interessante de se observar. A capelania começou a penetrar, mesmo que discretamente, o campo empresarial, ao mesmo tempo em que o coaching chegou aos púlpitos evangélicos, mas sem tanta discrição assim, repetindo o que ocorreu com a psicologia, que há duas ou três décadas se acasalou com a teologia, gerando a chamada “psicologização” do púlpito e do ministério pastoral.
A capelania nasceu de vocação religiosa e espiritual, mas está indo para a empresa. A psicologia é de berço científico, mas foi para púlpito. O coaching é uma abordagem criada para o desenvolvimento pessoal mais acelerado, entretanto também chegou à igreja. Esses três capelania, psicologia e coaching, se unem à teologia e à prática ministerial através dos elos da poimênica. Esse cenário torna oportuna uma breve análise comparativa dessas importantes áreas de atuação, o que pretendemos fazer neste artigo.
Esse fenômeno da correlação entre a teologia e a psicologia deve ser visto de forma bastante natural, haja vista não ser o primeiro dessa natureza. A teologia não é uma ciência[2], mas faz correlações importantes com ciências como a sociologia, a pedagogia, entre outras. Da mesma forma faz correlações com os demais campos do saber e do conhecimento, que como ela também não são ciências, como a filosofia, a psicanálise etc. O que talvez seja novo é a correlação da teologia com áreas de atuação como a capelania e o coaching.
O trabalho poimênico
O conceito de poimênica não é tão conhecido no meio acadêmico e teológico brasileiro, apesar da sua importância e realidade. Por outro lado, a poimênica enquanto práxis tem ocupado importantes espaços no ministério evangélico. Ou seja, pratica-se a poimênica, mesmo sem ter-se ideia do que ela seja.
A palavra poimênica tem origem no termo grego poimen, que significa pastor. Dito de outra forma, a poimênica é o trabalho pastoral de um modo geral. Como disciplina, estuda as ações pastorais. O termo é bem antigo e já aparecia na história da Igreja, relacionado à definição do ministério do pastor em relação à sua comunidade.[3]
Atualmente e de forma mais específica, a poimênica significa o trabalho de ajuda às pessoas que sofrem com enfermidades, tragédias, lutos, desajustes emocionais etc., com ações específicas do cuidado pastoral em seu propósito de “cura de almas”.[4]
Mas alguém diria que isto é o mínimo que um pastor deve fazer. Concordaríamos com a afirmativa, mas é inegável que o trabalho pastoral vem adquirindo novas formas nas últimas décadas, de sorte que curar almas se tornou apenas uma das áreas do ministério, com caráter de “especialidade”. Ou seja, se tornou aquilo que nem todos os pastores fazem e que para ser feito é necessária uma especialização, uma formação específica para isso. Em certa medida isso é compreensível, pois as igrejas crescem e não é possível ao ministro ser, ao mesmo tempo, administrador ou gestor, preletor, professor, capacitador, conselheiro, etc.
A capelania e o coaching
A capelania é um serviço de assistência religiosa prestado pelo capelão, que geralmente mas não exclusivamente é um pastor, padre, rabino, ancião ou outro líder religioso. Esta assistência é oferecida em ambientes de concentração ou internação coletiva, compulsória ou espontânea. Por exemplo, presídios ou hospitais (internação compulsória), quartéis ou instituições de ensino (internação espontânea). Num hospital, como por exemplo, o CAISM da Unicamp, a capelania “tem como finalidade um conjunto de ações que visam ao bem-estar completo da paciente e seus familiares, dos profissionais da saúde e funcionários em todos os níveis e também da própria instituição hospitalar, em autêntico espírito de comunhão e participação, para, em serviço mútuo, edificar o Reino de Deus e promover a saúde integral do ser humano”, segundo Wilson Enéas Maximiano, capelão do Hospital.
O coaching, termo de origem inglesa que significa “treinamento”, segundo Villela Da Matta e Flora Victoria “é um processo que visa elevar a performance de um indivíduo (grupo ou empresa), aumentando os resultados positivos por meio de metodologias, ferramentas e técnicas cientificamente validadas, aplicadas por um profissional habilitado (o coach), em parceria com o cliente (o coachee)”. Dito de forma, coaching é o serviço praticado por um profissional denominado coach, consumido por uma pessoa, grupo ou empresa que chamamos de coachee. A Sociedade Brasileira de Coaching explica que esse processo pode ser aplicado para o aumento da performance do indivíduo ou para a transformação e aprendizado do seu comportamento diante das diversas situações da vida, resultando ainda no aumento da satisfação pessoal.
A função de capelão figura no CBO - Classificação Brasileira de Ocupações sob o código 2631-05 (classificação de 2002) e, portanto, deve ser considerada como uma profissão, embora ainda não seja regulamentada por um órgão ou conselho de classe. Ou seja, o exercício da capelania não requer registro profissional, como ocorre, por exemplo, com o jornalista ou a assistente social. Há capelães que são remunerados por seu trabalho e há também os que prestam esse serviço voluntariamente. Quanto à sua formação, os cursos de bacharel em teologia oferecem uma espécie de “habilitação” para o exercício da capelania, no entanto é aconselhável que o interessado em atuar faça um curso de especialização ou formação.
O coach ainda não aparece na CBO, mas pode ser considerado uma profissão que, a exemplo do que ocorre com o capelão, não requer registro profissional. Entretanto, dada a complexidade da atividade dificilmente alguém conseguiria exercê-la sem uma formação adequada. As ofertas de cursos são muitas e com grande variação nos valores do investimento. No Brasil além da Sociedade Brasileira de Coaching existe a Associação Brasileira de Coaching Executivo e Empresarial, a Comunidade Coach do Brasil e um sem número de outras instituições e cursos. Especialistas alertam que o coaching não deve ser confundido com aconselhamento, mentoring, consultoria, terapia, treinamento e muito menos com capelania.
Aliás, os diferentes propósitos do coaching e da capelania distanciam as duas práticas profissionais. Os objetivos do coaching são voltados para o desenvolvimento pessoal com forte viés para o desenvolvimento profissional e empresarial. É bem verdade que seus propósitos são voltados para o crescimento do indivíduo nas principais áreas da vida, mas não se pode negar que o pragmatismo faz com que o maior alvo do processo seja melhorar a pessoa para produzir mais e obter sucessos. Não há nada de errado com isso se considerarmos que o coaching é um produto do capitalismo para países de economia capitalista, neoliberal e globalizada, como é o caso do Brasil (se o país não é tudo isso, é inegável sua vocação para tal).
Já os propósitos da capelania são outros, completamente diferentes daqueles almejados pelo coaching. Ela se empenha pelo fortalecimento do espírito e da alma de quem, em dado momento da vida, se encontra fragilizado física, psicológica ou espiritualmente. Enquanto as ferramentas do coach são testes representacionais, avaliações do perfil emocional e/ou comportamental do coachee (cliente de coaching), jogos e dinâmicas de autodescoberta etc., os instrumentos do capelão são a palavra de conforto, orientação espiritual, aconselhamento e assessoramento para situações de crise, a oração e a ministração da Palavra de Deus.
A capelania é um serviço de extensão da igreja e do ministério pastoral à comunidade, oferecido de forma sistematizada em ambientes de internação coletiva. É uma atuação pastoral no sentido de cuidado de viés acentuadamente poimênico. A pessoa que procura um serviço de capelania não terá que pagar por isso, mesmo tendo condições financeiras para fazê-lo. Se o capelão for remunerado, quando for o caso, seu pagamento virá da instituição que o contratou.
Por outro lado o coaching, que há tempos se tornou “frequentador” da igreja, almeja postos no ministério cristão. O coach, que é o profissional de coaching, reivindica atuação no serviço da igreja nos mesmos moldes do capelão. Vale lembrar que conceito de “coach cristão” já está estabelecido em certos segmentos evangélicos e há os que afirmam que “Coaching é uma habilidade fundamental para plantadores e líderes de igrejas em pequenos grupos”.[5] Entretanto, seu espaço na comunidade cristã deve ser muito bem pensado, para se evitar um fenômeno parecido com a psicologização do ministério pastoral, sobre o que falaremos adiante.
Lideranças de igrejas têm se preocupado com o crescimento não só do número de profissionais de coaching que assediam as congregações, mas com o discurso “coachinguiano” que ganha espaço nos púlpitos. Quem leu alguma coisa com certa profundidade, assistiu palestras ou tem uma formação na área facilmente identifica jargões próprios dessa profissão, utilizados por pregadores. Coisas do tipo “você precisa saber como sair do plano A e chegar ao plano B”, “só é impossível aquilo que você nunca tentou”, “você é o que escolhe se tornar”, são cada vez mais comuns em pregações. Dia desses estava num culto onde o pregador tentava provar “biblicamente” que Deus foi um coach para Moisés e Josué.
Psicologização do ministério pastoral
Há duas décadas, mais ou menos, aconteceu algo parecido com a psicologia, chamado por muitos de psicologização do púlpito ou do ministério. Talvez numa escala menor do que está ocorrendo agora, pois se tornar psicólogo leva mais tempo e é mais complexo que se tornar coach.
Essa psicologização entre os evangélicos foi uma espécie de modismo, com diferentes características. Muitos pastores ingressaram em cursos de psicologia e outros se aprofundaram no estudo autodidático dessa ciência. A prática do aconselhamento oferecido nos gabinetes pastorais ganhou características mais “profissionais” e “clínicas”, passando do aconselhamento bíblico para o aconselhamento cristão ou pastoral. A diferença é que o aconselhamento bíblico usa quase que exclusivamente textos bíblicos na orientação aos aconselhandos, enquanto que o aconselhamento cristão ou pastoral usa conceitos e teorias da psicologia e da psicanálise, associados ao uso das Escrituras. Outra característica do modismo da psicologização foi o uso da terminologia técnica nas pregações. Pastores passaram a falar em doenças psicossomáticas, complexos, recalques, cura da alma etc.
Vantagens e desvantagens desse movimento
Em certa medida isso trouxe algumas contribuições como, por exemplo, a correlação entre a teologia e a psicologia e uma nova compreensão dos fenômenos humanos à luz dessa conexão. Outro ganho foi o aprofundamento dos estudos da psicoteologia, abordagem que busca compreender o ser humano à luz da psicologia e da teologia, numa análise da psique (alma) conjuntamente com a espiritualidade, porém, distinguindo entre as causas e sintomas de um determinado problema, seja ele patológico ou não, as suas origens psicológicas ou espirituais. Ou seja, deixando de olhar como espiritual um sintoma psicológico e vice-versa.
Mas o que preocupou nesse movimento foi que muitos pregadores adotaram a compreensão psicológica como método “exegético”. Dito de uma outra forma, passaram a interpretar a Bíblia não mais pelo método histórico-gramatical, ou mesmo histórico-crítico, mas alegoricamente a partir da psicologia ou da psicanálise. Uma segunda desvantagem foi a proliferação de escolas evangélicas de “formação” psicanalítica. Nesses cursos, muitos de curtíssima duração e oferecidos pela internet, os participantes recebem “diplomas” de psicanalistas, abrem seus consultórios e começam a “clinicar”. Existem até cursos de “doutorado” em psicanálise, totalmente online, com um ano de duração.
Conclusão
Obviamente todas essas opções são importantes e têm lugar na sociedade e até na igreja. Nada de errado na possibilidade do pastor buscar formação técnica e profissional em psicologia, psicanálise, ou coaching, assim como ele pode ser advogado, engenheiro ou mecânico. Também não se elimina a possibilidade de a igreja ter programas de atendimento técnico e profissional de psicologia, psicanálise e coaching. Também é possível que o pastor ou outra pessoa atenda em aconselhamento cristão ou pastoral usando os recursos da psicoteologia, desde que bem preparados para isso, com formação adequada.
O que é preciso observar é que cada coisa tenha seu lugar adequado, andando no seu próprio caminho ou trilhos, não invadindo ou entrando em área alheia. É o popular “cada macaco no seu galho”. Misturar o ministério da Palavra com psicologia, psicanálise ou coaching pode resultar na falta de pureza de todas elas. Se as funções seculares não forem puras, está faltando ética. Se a Palavra não for pura, está faltando vida.
Quando a capelania e a poimênica, mesmo em meio a tanta atividade pertinente ao exercício do ministério, não podem ser esquecidas. Pastores são chamados a pastorear. Nem todos os pastores serão capelães, mas todos deverão, sempre que necessário, curar as feridas do rebanho. Um pastor não pode, sob o pretexto de acúmulo de atribuições, negligenciar o cuidado com o rebanho. Afinal, como dizem, pastor tem que ter cheiro de ovelha.

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REFERÊNCIAS:
SANTOS, Gilson. Poimênica. In: Instituto Poimênica. Disponível em https://institutopoimenica.com/sobre/quem-somos/. Acesso: 28 jul 18.
STOLTZFULS, Tony. Coaching de liderança: as disciplinas, habilidades e coração do coach cristão. São Paulo: Coach Plataform, 2015.



[1] Nelson Gervoni é pastor anabatista. Tem formação em Teologia, Pedagogia e Psicanálise. É pós-graduado em Relações Interpessoais na Escola e doutorando em Humanidades, Artes e Ciências da Educação.
[2] A teologia não é classificada como ciência, como também não o são a filosofia e a psicanálise, por exemplo. Não obstante, são importantes áreas do saber e do conhecimento, podendo trazer contribuições até mesmo para as ciências, principalmente as da área de Humanas. Ela não é considerada ciência, razão pela qual os seus pressupostos não podem ser confirmados ou avaliados a partir de uma metodologia científica. As ciências da religião são as que mais se aproximam da teologia. Estas sim, se valem de diversos instrumentos da metodologia científica, sendo assim classificadas como ciências, a exemplo do que ocorre com a psicologia, sociologia, pedagogia etc.
[3] SANTOS.
[4] Idem.
[5] STOLTZFUS, 2015, comentários do livro.

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